
Em nosso mundo, existem pessoas que têm aquela mania besta de serem legais com as outras. Giuliana com G se considerava uma delas e foi por isso que, na vigésima terceira vez em que tomou banho na casa de Raphael com ph, depois da vigésima terceira vez em que fizeram sexo, foi porque Giuliana era uma pessoa legal que ela não disse nada quando viu um xampu de rosas no chuveiro. Xampu que não estava lá das outras 23 vezes.
Para se ter uma ideia de como Giuliana era uma pessoa legal, a partir da segunda vez que foi à casa de Raphael passou a levar o próprio xampu e o condicionador na bolsa. Nem reclamou com o Raphael que ele não usava e nem tinha xampu, só havia sabonete no box e um desinfetante no cantinho. Afinal, ele era calvo. Pra quê xampu?
Em nosso mundo, ainda não foi definido o número de vezes que as pessoas devem fazer sexo para que haja um mínimo de intimidade a ponto de se poder conversar sobre hábitos de higiene tão necessários como o uso de xampu ou a quantidade de parceiros sexuais que se têm. Também ainda não foi definida a quantidade mínima de afeto recíproco para que aquilo que elas fazem seja chamado de paixão ou namoro a ponto de que essas pessoas tenham coragem suficiente para andarem de mãos dadas em público.
Pessoa legal que era, depois de 23 vezes que fizeram sexo animal, Giuliana até gostaria de andar de mãos dadas. Em nosso mundo, essa seria a primeira fase de outras igualmente excitantes e excepcionais: cinema com beijinho engasgado de pipoca, almoço com os sogros inventando conversa para suprir a falta de intimidade e a necessidade de aprovação e, por último, mas não menos importante, a viagem para a serra com direito a café colonial depois de uma noite sem transar. Tudo isso e o xampu de rosas punham um dilema moral a Giuliana: continuaria a ser a pessoa legal que era e permaneceria calada ou confrontaria Raphael a respeito daquele objeto insurgente e repulsivo? Da onde vinha? Há quanto tempo estava ali? Para quem?
Giuliana estava apavorada como um animal encurralado ainda que tentasse ser racional como as detetives de séries de crime americanas. O xampu era para cabelos secos, os seus eram secos nas pontas e oleosos na raiz. Detalhe insignificante aos olhos de qualquer ser da espécie masculina, heterossexual e que não fosse cabeleireiro de profissão. O frasco parecia ter sido usado. Procurou por evidências de DNA, isto é, fios de cabelos, e não os encontrou, o que provava algum cálculo, senão algum asseio, da parte de Raphael.
Se nem mesmo eram namorados depois de 23 transas, algumas delas fenomenais, e depois de 23 banhos usando o próprio xampu, não era da conta de Giuliana saber que raios aquele xampu fazia ali. A curiosidade, no entanto, a mordia pela bunda como um rottweiler enfurecido. Foi nesse clima que saiu do banheiro.
Na cozinha, Raphael acabara de passar o café e lhe deu um beijo. “Gostou do xampu? Comprei pra você não ter mais o trabalho de trazer de casa”. A pergunta deixou Giuliana embasbacada. “Mas eu não uso essa marca”. “Eu não sabia qual você usava”. “Você nunca perguntou”. “É cheiroso, não é?”. “Raphael, não posso usar xampu de outra marca”, ela disse como quem explica algo a uma criança. “Você sabe… Eu sou casada”. E então o encarou forçando naturalidade no olhar e, talvez com um certo cinismo, continuou:
“A gente é só amigo. Estou tentando ser legal com você”.
4 Comments
Que texto incrível. Li vidrada. Irretocável. Como você escreve bem. Brincou com um monte de reflexões e nos conduziu ao fim dos mais inesperados. Giuliana é uma pessoa legal! Adorei, adorei!
Diversão, suspense e criatividade. Uma delícia de história. Ela poderia ser romântica, e até mesmo açucarada, mas se mostra mordaz e tem final fora do senso comum. O uso da palavra ainda, em diversas passagens do texto, nos lembra que nada resiste ao tempo, nem os costumes e nem as histórias de amor.
Você foi legal e original por demais com este texto!
Surpreendente!! Maravilha de texto!! Quem nunca se mordeu com neuras desse tipo que atire a primeira pedra.