Meu Deus, é uma mulher! O quê? Então, ele deixa ela entrar? E ainda por cima é bonita! Sem vergonha, descarado! Vou armar um grande barraco, botar pra quebrar, rodar a baiana, desmascarar o falso profeta! Tanta engabelação metafísica para tudo terminar assim e o pior, eu com essa lingerie de trivial simples, tal e qual uma amante clandestina e injustiçada! Como é possível? Tudo começou com a presença de um urso bege lá na plataforma número 2 da antiga e ampla estação de metrô vienense, a “Zusammen”. Míope e assustada, entro arfando no vagão e me alojo em frente a um gato, ou melhor, um lindo rapaz. Ao constatar meu estado, ele gentilmente segura minhas duas mãos e me faz inspirar e expirar cinco vezes. Sim, é professor de ioga e meditação transcendental e nada do que é (des)humano lhe é estranho. Absolutamente NADA, diz, me olhando seriamente. Portanto, que um urso andasse atrás de uma mulher da minha idade- apesar de me considerar ainda bastante conservada, como fez questão de frisar- não lhe surpreendia. Seu discurso é convincente:
– Por acaso, eu me dava conta de que os homens são verdadeiros predadores e o ser humano, na melhor das hipóteses, só tem um ligeiro verniz de civilização (algo que os grandes pensadores iluministas já sabiam)? Apenas com ioga, meditação e certos aplicativos mais recentes, podemos adquirir o tal verniz e sair peregrinando pelas estações do mundo (se necessário, até fantasiados de urso, diz o gato sorrindo). Mas é preciso ter muito cuidado para não cair na tentação de querer domar predadores e muito menos de cair em suas garras.
– Você não leu ontem a história de um casal que durante dez anos teve em casa um urso pardo chamado Hércules? E que ele acabou fugindo! Tira um jornal da mochila e lê: “Ele era como uma pessoa para nós- disseram os pais adotivos-. Não gostava de comida crua, costumava fazer sua refeição principal no meio tarde. Servíamos 3,5 kg de carne. Ele gostava dela cozida com sopa, principalmente de tomate, com batatas e cenouras. De manhã, o encontrávamos nos esperando para o café”.
– Será…? Gaguejo.
-É evidente, no caso, trata-se do mesmo urso do jornal. Normal que ele não queira mais passar os dias tomando café com os pais adotivos, todos nós necessitamos ir embora do ninho. Hércules, veja bem, é uma metáfora do nosso lad0 animal, de tudo que temos aí, percebe? Não vê as pessoas se agredindo física e virtualmente, porque um pensa assim, o outro, assado? Porque um gosta de mortadela, outro de coxinha? Não vê o grau de paroxismo animalesco a que chegamos? Não vê que ninguém dá a ninguém a ocasião de refutar? Ah, sabe que Zusammen em alemão, significa “juntos?” Sim, agora que estamos juntos, não vou permitir que você se exponha a predadores, vestidos de urso, ou não. E o que me diz do nome da estação onde nos encontramos? Uma bela mensagem, concorda?
Sim, a estas alturas eu já concordo com quase tudo. E foi assim que vim parar no banheiro do apartamento furreco, para onde, eu, de calça e sutiã de atriz de filme noir B – mal tínhamos começado os trâmites- ao som insistente da campainha, fugi correndo, com medo do animal. Porém, o vão desta cortina me revela, a visita é de uma outra cliente do curso de Atenção Plena, ou melhor, “mindfulness”, como se diz agora em português brasileiro.
O despertador toca urgentemente. São sete da manhã, definitivamente não estou em Viena! Acordo deste estranho pesadelo vestida de calça e sutiã, ao som dos furiosos miados de Hércules, o velho predador angorá, cobrando o seu desjejum, como de praxe.
7 Comments
Freud e Jung deram muita importância aos sonhos, que seriam a revelação do Inconsciente: Entretanto…
“Uma plataforma de metro em Viena, Zusammen (o que será que esse detalhe quer dizer?), um gato professor de Ioga, um gato transcendental, um urso rebelde, adolescente que já não quer mais morar com os pais, um ninho vazio… e ela em uma lingerie trivial, dentro de um banheiro furreco… Trivial? Nada há de trivial nesta estória, só o sutiã e a calcinha…” Acho que este pesadelo nem Freud explica! Só com muita Atenção Plena!
O conto passa por assuntos muito interessantes – relacionamentos, civilidade – e tem uma leveza adorável. Achei ótima a reviravolta no final.
Ações vividas pela personagem, viradas na história, relação entre cultura e natureza, tudo misturado com filosofia e humor. Muito gostoso de ler. A parte que mais gostei
“os homens são verdadeiros predadores e o ser humano, na melhor das hipóteses, só tem um ligeiro verniz de civilização”
O conto já entra de supetão! Gostei muito da linguagem dinâmica que adotou. E as ironias??? Julia irônica é imbatível! “ Mindfulness em português brasileiro” foi impagável. Seu humor está muitíssimo elegante.
É Mônica, cansei de ser séria, resolvi me divertir um pouco!
Maria Júlia
Que bom podermos nos divertir juntas!!!
Júlia, muito divertido seu texto!! Fiquei ansiosa para saber como seria o desfecho!