
Tudo não passou de um sonho. Quando acordou, estava deitada no fundo de uma piscina vazia. Seca, sem uma gota d’água. O ar com pouca umidade entrava dilacerando todos os tecidos por onde passava, desde as narinas até chegar ao pulmão. Era tudo ar e no entanto faltava ar, aquilo era quase irrespirável. Observou a piscina. Parecia estar num céu empoeirado, enquadrado e limitado. Resolveu nadar naquele ar da piscina, ciente de que não daria para tirar a cabeça para fora como se faz quando se nada n’água. Não havia leveza, não havia a textura do líquido, era como se não houvesse sensação nenhuma de tato. A sensação era de ridículo. Parou de nadar e pôs os pés no chão. Viu-se: as solas dos pés muito sujas. Percebeu-se: uma mulher em pé numa piscina de azulejos vazia. Ali, não adiantaria boiar ou nadar, nem havia escada para chegar à superfície. A piscina era muito funda, como aquelas para treinar mergulhos profundos. Lembrou-se então de como chegara ali: sonhara que entrava numa fila sem saber direito para o que era. Quando sua vez se aproximou, descobriu que era para uma aula de mergulho. A piscina era grande e funda e revestida de azulejos azuis. Não estava com roupa de mergulho, precisaria alugar. O instrutor chegou e perguntou-lhe o que ela estava fazendo ali. “Não sei direito”, respondeu, e continuou: “Estou com medo do fundo do mar, do fundo da piscina. Mergulhar, não é claustrofóbico?”. O instrutor repetiu: “O que você está fazendo aqui?”. “Há muito tempo atrás eu tinha vontade de fazer aula de mergulho”. Essa mulher de muito tempo atrás, talvez uma menina, sonhava que um dia saberia mergulhar, nadaria com as tartarugas e pegaria carona na cauda de uma baleia. Viajaria o mundo inteiro pelas correntes marítimas com rotas estabelecidas e circulares num destino que nunca chega ao seu fim. Mergulharia tão fundo no mar que a visão não teria mais sentido. O instrutor novamente se dirige a ela que agora não mais o compreende, sua audição só percebe os ruídos do oceano profundo, movimentos e animais que não saberia nomear. O contato com a água é denso, texturas gelatinosas passam por sua pele, às vezes sente um ardor, outras vezes sente cócegas. “Eu rio muito”, pensa, enquanto solta bolhas de ar pela boca em vez de respirar. A visão vai se turvando. A voz do instrutor bem ao longe como um objeto esquecido que não se lembra mais de ter tido. Ela vai cada vez mais fundo até se tornar ela mesma um objeto esquecido no fundo do fundo do mar, abraçada por algas, conchas, esponjas e corais. Lembrou-se então de como chegara ali: quando certa manhã acordou de sonos intranquilos, encontrou-se no leito do oceano metamorfoseada em um polvo, esse animal de extremo apuro sensorial com seus oito braços e muitas ventosas, que a fazia experimentar gostos e texturas pelo tato, de uma maneira mais intensa, ou diferente, da humana. “O que aconteceu comigo?”, pensou. Não era um sonho. Talvez um desejo. Transbordar em outras, fosse humana ou animal, entre o sono e a vigília, o sonho e a realidade, a terra, o ar, a piscina, o oceano.
- créditos da imagem: Carolina Geaquinto
6 Comments
Transbordar o sonho, sentir texturas, tocar superfícies, expandir… a vida normal nunca foi tão extraordinária vista do fundo da piscina vazia.
Nos textos de Carolina há sempre texturas que se desdobram em múltiplos significados. Nesse, a densidade é o próprio conteúdo. Nadar no nada profundo, no ar, na água do oceano bem fundo. Fundo, denso, gelatinoso. Um acontecimento no entre de uma personagem a firmar-se em fluidez e possibilidades.
“Lembrou-se então de como chegara ali…lembrou-se de como chegara ali, e os sonhos vão engolindo os sonhos, e o melhor de tudo é que o texto não acorda. Muito visual, muito sensorial. Seu talento é enorme, Carolina!
obrigada, Vaneska!
“Ela vai cada vez mais fundo até se tornar ela mesma um objeto esquecido no fundo do fundo do mar, abraçada por algas, conchas, esponjas e corais”.
Que bom poder se transformar num polvo, habitar o fundo do mar, ver estrelas, cavalos marinhos, corais, conchas, sereiras, yaras, ter oito braços, tudo abarcar, viajar por vários mares, partilhar do azul profundo ! Lindo sonho, devaneio, texto poético e colorido!
Obrigada, Julia! 🙂