AUTORAS CONVIDADAS / DÔRA MACHADO

Senti falta do grito do gol, da vibração pelo Botafogo, da zoação com os flamenguistas.
Senti falta das músicas do Gonzaguinha quase declamadas em feitio de oração.
Senti falta dos cheiros de café, do cheiro de churrasco, de feijão carregado, do baião de dois, do leite de rosas espalhado pela casa.
Senti falta da rodoviária bem cedinho, da serra de Friburgo, do ônibus de Boa Esperança, de olhar a pracinha de Lumiar e por fim saltar no larguinho de nossas esperanças.
Senti falta de uma mão no meu cabelo, senti falta de ser mimada.
Não senti falta de brigar, mas senti muita falta de recomeçar.
Senti um vazio pela falta de projetos de vida calma e de sonhos que mesmo desfeitos se materializaram enquanto sonhados.
Senti uma saudade espremida, escondida nas dobras do espaço, e ao mesmo tempo espalhada por e em diferentes tempos.
Se enganam aqueles que insistem que as ausências passam e que temos que dar descanso aos ausentes.
A ausência nada mais é do que uma presença invisível, uma voz, um olhar, rebatidos e refletidos pela nossa voz, pelo nosso olhar, um preenchimento de átomos que ainda desconhecemos.
Senti.
Senti pela falta.
Senti pela vida…
Senti muito.
4 Comments
É interessante neste texto que repete e repete “senti falta” e, ao mesmo tempo, aborda tantos momentos de abundância. Não à toa termina maravilhosamente bem com “senti muito”. Bem-vinda! 🙂
Tantas as vidas, tantos os sinais, os sentidos, que mesmo a ausência é presença em forma de mistério, de palavras, de silêncio. Para mim o texto poema trouxe o cheiro, a cor, o toque na pele do frio de tantas vidas vividas em Lumiar. Senti.
Dora, que belo texto, bastante inspirador nesta fase da minha vida. Também tenho saudades espremidas, ausências presentes, doídas, de pessoas, objetos, lugares e tudo o mais. Como você concisamente tão bem colocou. Bem-vinda a esta Roda que eu, há muitos anos, após uma oficina literária aí no Rio, resolvi iniciar. Gente boa de pena e de papo. Abraços e até à próxima rodada. Júlia
Prosa tão íntima quanto universal. Lindo e comovente.
Bem-vinda à Roda!