
Coloco água e café na cafeteira e o cheiro reconfortante invade a tarde. Sou tomada por essa sensação, um contentamento por existir.
Café pronto, despejo o líquido quente na xícara e a fumaça revela estranhas formas no ar. Elas sugerem segredos, que de tão escondidos, sumiram quase por completo. Hoje vou contá-los ao homem que me tem amor e confiança, à noite ao jantarmos. Talvez o vinho ajude com as palavras.
Antes de sentarmos à mesa, ele me deu um beijo. Na boca, longo. Eu, toda agonia, deixei. O corpo, rígido, entregou-me. Ele me olhou, olhos vivos como sempre, e soltou meus braços. Quis pedir desculpas. Desisti.
Não conseguia começar. Em tentativas anteriores, os olhos dele, sua expressão, me desencorajavam. Hoje, eu queria mesmo era fugir. Mas não, não adiarei mais.
Em vez de mim, foi dele a iniciativa. Suas mãos se estenderam e acolheram as minhas,
Diz logo o que está tentando dizer.
Como resposta, puxei as minhas mãos. Estava assustada e fascinada. Finalmente o entulho que permaneceu sob o pó do tempo seria desenterrado.
Enfim aconteceu. Foi naquela hora em que dizíamos, entre risos e talheres nas mãos, as coisas de sempre. Comecei. Séria e solene,
Tentei várias vezes te contar, juro. Não consegui. Nunca era o momento certo. Nunca.
Estamos tão felizes.
Marina, Escuta, não fala, não precisa falar.
Ricardo, não posso guardar esse segredo. Mesmo que seja insuportável contar. Ouça,
Era uma época difícil. Precisei. Paguei estudos, casa de meus pais, me formei, construí uma carreira. Meu Deus, não posso.
Fui garota de programa.
Marina, você deveria ter deixado tudo para trás. Eu pedi para não contar. Eu sabia. Eu sabia desde a primeira vez que te vi. Fui um de seus clientes.
Tinha quinze anos, cabelos compridos, corpo mirrado. Demorei a desenvolver. Meu pai pagou para me transformar em homem.
Você mudou muito, mas eu a reconheci logo. Fiquei feliz por você não perceber que nos conhecíamos. Desejaria que jamais tivesse me contado. A partir de agora me verei em seus olhos,
Marido de uma puta. A merda de um marido de uma puta!
Aquelas palavras me arrastaram para um vazio onde só existia o silêncio. Dentro dele era irrelevante saber quem exatamente éramos ou fingíamos ser. A transparência das últimas palavras, ditas aos berros, serviu para que eu visse afinal.
Corri para o quarto e tranquei a porta. Ao ficar sozinha, percebi a inutilidade do esforço em enconder a sombra que me habitava e decidi nunca mais sentir vergonha de mim.
Respirei fundo e fui até a janela. Olhei o céu. Vi as nuvens cinzas e pesadas prontas a desabar. Vi a vizinha, uma senhora de cabelos encaracolados e grisalhos. Ela levava um guarda-chuva. Com ele apontou o céu,
Tempo ruim, né?
Respondi, É…
Ela completou, há dias nublados e há dias de sol. Não importa. Vive-se de qualquer maneira.
Bom dia, minha jovem. Bom dia!
7 Comments
Como a Júlia, gostei muito do título. E também da leveza com que você finaliza a história: vive-se apesar das palavras e pessoas que magoam, que rotulam. Um alento ler seu texto.
Uau! De tirar o fôlego e de fazer pensar. Pensar se aquele vizinho que comenta sobre o tempo meio sem graça no elevador não estaria também diante do turbilhão de ter assumido quem ele verdadeiramente é, ou se ao contrário imerso no submundo de suas dores que não deixa vir a tona?
À propósito, hoje está chovendo. Quem sabe amanhã não faz sol.
Eliana, que título inspiirador. Sim, cheiro de café fresco é uma pequena felicidade. Relato cheio de supense e de surpresas!
3a tentativa
Gostei do cheiro reconfortante de café- pequenas felicidades. -Título interessante de um relato que envolve e surpreende.
Interessante o título, “pequenas felicidades” bom saber cultivá-las. Pois a vida é mais isso do que aquilo. Independente de seus aspectos novelescos e imprevisiveis.. .E …genéricos!
Não devemos ter vergonha do que somos!!!