
Estou reaprendendo a andar.
Antes que o pensamento ganhe asas e que uma série de metáforas nos conduza pelo acostamento da realidade, aviso: é literal. Sofri um acidente e fiquei meses sem pisar. Se eu precisar fugir, será um problema. Ainda não consigo correr. Nem em caso de emergência, nem para salvar a própria vida. Mas cheguei à fase das caminhadas. O doutor autorizou.
Um passo de cada vez, redistribuição do peso, firmeza na planta do pé, nos dois, viu?, confiar no chão, negociar com a dor, distrair a dor, empurrá-la para fora da pista e tomar a dianteira. Respirar. Passo a passo, deixo a casa, o bairro. Meta de hoje: ninguém falando na minha cabeça.
Existe uma distância palpável e inexprimível entre falar sobre e viver. Aproveite o recomeço, o conselho do espectador ecoa. Contraio a testa com a interrupção, a frase feita. Vamos lá, de novo: respirar, expulsar a dor, um passo após o outro, feito mantra, rua após rua, carros na direção oposta, ignorar a pressa. Uma ladeira se acentua depois da curva. Concentração. É ótimo para a musculatura posterior da coxa, a voz do terapeuta físico atravessa. Vai ficar com o bumbum durinho, olha que sorte. Penso em desistir, dar meia volta, farta do pêndulo motivacional. Mas a floresta se aproxima, as construções se dissipam, o cheiro do mato acena com a brisa. Okê! A algazarra interna se intimida: com a altura das árvores, a densidade do verde, o chacoalhar dos galhos, a perseverança contra o esquecimento imposto por camadas de folhas e séculos.
É a chance de continuar. Um pé, o outro. Focada no movimento, ergo bem os joelhos: para que as pontas dos dedos não arrastem no asfalto e me derrubem outra vez. Ombros abertos, inspirar, expirar. Em algumas tragadas, o oxigênio me anestesia. Aquela que sou dentro da cidade se afasta e o ruído, enfim, cessa. Um corredor sereno se oferece. Abro os braços, inclino a cabeça, inalando o vento e as rajadas de sol que se esgueiram pelas frestas da mata. Nessa toada, talvez possa, de fato, recomeçar. Talvez até reencontre a casa que já não existe, com suas tábuas rangentes sinalizando o perigo, janelas e prateleiras sempre abertas.
Anos andando no mato… (*)
O silêncio me aguça, firma meu sopro, a forma de sentir. Imperceptível na calmaria, um sussurro se anuncia pelo chão. Paro em alerta. No meio da trilha, duas cobras se entrelaçam. Num ricochete lascivo, o guizo de suas caudas se mistura ao chacoalhar da vida. Reconhecendo minha presença, o bailado se interrompe. Suspensas no tempo, nos observamos. Não posso correr, nem para salvar a própria pele. Mas sei mancar rápido. Um torniquete com o cadarço do tênis, ou com a blusa rasgada, resolve. O posto de saúde mais próximo, onde fica mesmo? O caminho recente desbota, seus rastros se apagam feito migalhas de pão engolidas pelos pássaros.
Calculando, giro meu tronco devagar, sem desviar o olhar. Quero que me entendam. Dou um passo ao lado. Agora a outra perna, a trajetória no espaço, os músculos respondendo ao contato com o solo. O intervalo entre um movimento e o próximo negociado em pensamento. Só preciso passar. Segundos — milênios — depois, elas retomam o ato, mordiscando sem veneno, contorcendo seus corpos esguios num só. Um passo, mais um, pronto. Contorno o momento e sigo adiante, trêmula de algo que me fez lembrar a antiga coragem. Mas que não é. Foi apenas um instante desavisado, um breve encontro entre seres que, do contrário, atacam, defendem, sobrevivem ou perecem. Não olho para trás, mas sei que ainda estão lá, indiferentes ao meu percurso, entregues ao ritual cíclico do amor.
(*) Paulo Leminski
3 Comments
Gostei muito do contraste entre a primeira parte sobre o caminhar e a segunda sobre o encontro com as cobras. Apesar de a narradora nos avisar que estamos no “acostamento da realidade” e de que a história é literal, o texto é repleto de imagens que nos levam além das palavras, além da mata, além das cobras. Muito bom!
O corpo pensa, a alma se curva e o que chamamos ser, o que somos cada um de nós, se apresenta nas multiplicidades dessas instâncias concebidas como separadas. Foi o que me permaneceu de mais forte no texto, a relação indissociável entre espírito e corpo – a imagem das duas cobras entrelaçadas intensificou essa percepção. Destaque também para a narrativa. Ela tornou reais aos sentidos do leitor a dor, a coragem e o medo da protagonista.
A frase inicial e o primeiro parágrafo contem promessas e suspense. Assim você prossegue, concreta e metafóricamente. Texto muito bom, profundo, narrativo, conciso.
Bonito: ….”confiar no chão, negociar com a dor, distrair a dor, empurrá-la para fora da pista e tomar a dianteira. Respirar.