
Chove no mundo. O nariz toca a película de vidro que separa a vida lá fora. Ouço a intensidade da chuva, tal é o silêncio a impregnar as coisas. Exceto pelo coração a bater. Ele espalha os rios que correm em mim e faz pulsar as veias nas minhas mãos. Reparo que nelas apareceram as primeiras manchas de senilidade e não ligo. Não há o que dizer, ainda mais para os objetos ao redor. Eles espreitam mudos e embaçados pelo pó fino da casa abandonada.
Há, claro, a opção de falar sozinha. Não é a mesma coisa, falar sozinha. Não é algo que se faça de caso pensado. O som sai sem querer de dentro da gente, como um descuido, como um ato falho. Nem percebemos quando acontece. Aliás, são tantos os momentos de silêncio, que tenho a impressão de que a garganta se estreita a cada dia e de que a boca só serve para comer, aos bocadinhos, e para escovar os dentes.
Estando sozinha, não enjoei da própria companhia. Não, isso não. Visito cantos empoeirados que me habitam e gosto do que encontro, lembranças. Elas se acumulam com passar do tempo. Enriqueci. Bônus por envelhecer. Cheguei em um estado em que se sorri sem saber que está sorrindo e de não esconder ou dissimular desatinos. Se pareço me ufanar, é sinal de que não há limites para a insensatez.
Admito, persistem ainda algumas inseguranças. Aquelas que assustam, fantasmas em esconderijos mal disfarçados, e as que atestam em mim o modo frouxo e errático de toda gente. Como a das criaturas que caminham apressadas na rua e fogem das intempéries do mundo com seus guarda-chuvas desmantelados. Elas, eles e eu tão débeis.
Às vezes bate em mim uma tristeza. Como na hora em que me estiquei toda na vidraça e vi uma mulher correr seminua e desesperada. Expulsa de casa, um pedaço de calçada suja e molhada. Merda. Que gente ruim, Reclamo no oco da minha cabeça, aliviada por poder reclamar.
Regresso para dentro do silêncio e penso na doença que tomou o mundo, a do vírus de nome coroa. Ele reina no meio de nós. Seria o caso de pensar em escuridão. Mas tudo são luzes e fumaça no Sul maravilha. A morte ganhou uma banana e virou piada. Uma lágrima vez ou outra e volta-se ao jogo. O riso estronda no salão com as piruetas do palhaço Belzebu – Que me perdoem os palhaços e também o Tinhoso.
Volto à janela para olhar o céu. Ele de repente ficou azulzinho. Uma imensidão de indiferença. Nem te ligo para qualquer presepada humana.
O peso de tanta neutralidade faz o choro apontar na garganta. Ele rompe em forma de grunhido, teatral e desafinado, sem palmas e espectadores. Na falta da dor espontânea, as palavras chegam em socorro e saem em fio de voz. Voz de condenada,
Definitivamente, ninguém olha por nós.
5 Comments
Há no seu texto uma angústia que habita muitos de nós. Ao menos os que estão despertos para a gravidade das coisas. Os despertos são justamente os que já despertaram para dentro.
“Estando sozinha, não enjoei da própria companhia. Não, isso não. Visito cantos empoeirados que me habitam e gosto do que encontro, lembranças. Elas se acumulam com passar do tempo. Enriqueci.”
Compartilho os teus sentimentos e a tua frase. Volte para a crônica, Eliane, ou melhor, não a escanteie! Tua verve, percepção, concisão são preciosas.
Oi Eliana!
Texto muito profundo e tocante!
Você resumiu muito bem esse momento que vivenciamos!!!!!
“A morte ganhou uma banana e virou piada. Condenados, definitivamente, ninguém olha por nós.”
MUITO TRISTE E DESESPERADOR!!!!
Agora é confiar em Deus e que ele ilumine nossos pesquisadores para descobrir a cura dessa peste.
Beijos
Também adorei a Eliana cronista! O céu é indiferente, ninguém olha por nós e, ao mesmo tempo, nós sim olhamos tudo e por tudo: objetos, a chuva, as mãos, cantos empoeirados da memória, a tragédia do momento atual.
Temos um mundo dentro da gente enquanto tivermos voz e escrita.
Amei a Eliana cronista dos tempos atuais. Precisa nos apontamentos desses dias de tanto abandono. Nesses tempo também percebi as primeiras manhas senis em minhas mãos e, como você, dei uma banana ao tempo com ela.