
Na casa da Cidinha ele tocou na quarta-feira. Dia ruim porque ela trabalhou a noite toda na enfermaria e tentava descansar. Não tirava o dedo da campainha. Achou melhor ver logo o que era, para se livrar e dormir um pouquinho antes dos três mosqueteiros voltarem. Tinha uma vida pra levar. O homem ali pelos trinta anos e roupas muito sóbrias pro lugar, perfume bom. Disse que seria breve, mas que os minutos valiam a vida, o futuro da Cidinha. Ela se assustou e desconfiou, mas era crédula e deixou entrar. Que mal tinha? Um homem tão singular. O homem desandou a falar. Vendia um amuleto para espantar o comunismo. Coisa fina, desenvolvida pela NASA. Ela não sabia bem o que era. Explicou-lhe direitinho que estavam a ponto de implantar o comunismo naquele lugar, nos países vizinhos já conseguiram, por isso era urgente que todos se protegessem. Comunismo é um sistema engendrado pelo demônio, que vai tirar a casa e qualquer outro bem dos pobres e trabalhadores. De certo modo também tira os filhos, porque ela não poderia mais educá-los do seu jeito, são matriculados pelo governo em instituições doutrinadoras que eles fingem ser escolas. E a alma, então, perece totalmente porque é uma vida de libertinagem e pecado, como a daquela vereadora, segredou. Cidinha fez cara de espanto, disse que não acreditava, que tinha emprego com todos os direitos, a casa tinha registro, era tudo dentro da lei e eles não poderiam tirar. E os filhos ela educava como queria. O homem assegurou que poderia provar, e apresentou como irrefutáveis as mensagens no celular: a prima do seu vizinho recebeu na escola um kit-gay ensinando que não existe isso de masculino e feminino, que todos devem se beijar. O chefe do amigo do seu irmão viu com os próprios olhos uma mamadeira em forma de piroca enviada para a creche municipal. O pastor mostrou a foto do filho do Mentor de Tudo dentro de uma Ferrari de ouro puro, em frente de seu castelo de seiscentos e sessenta e seis quartos. Tudo explicadinho, ela corria os olhos pela tela e eles se arregalavam. De vez em quando vinha uma mensagem de ursinho. Cidinha chamou três vizinhas para que também ouvissem. Tomadas de espanto, elas ousaram perguntar: e o preço? Quanto custa esse amuleto pra gente se vacinar? O homem sorriu, mas só por dentro. Fez uma cara compungida e explicou. Não era barato, sabe como é, pagar os royalties para a NASA, coisa e tal, mas diante do perigo do comunismo, considerem que sai por pouco. Não, não era boleto, coisa muito mais moderna. Bastava apertar dois botões, apresentando o título de eleitor. Uma espécie de cheque em branco, onde à medida que fossem espantando o demônio os homens de bem iriam preenchendo com os valores. Pague-se por esse cheque a quantia de: aposentadoria; carteira de trabalho; voz; direito de ir e vir; atendimento médico; universidade gratuita… E ao final, com todo o perigo vermelho já bem exorcizado, entrego como quitação plena, geral, rasa e irrevogável deste amuleto o meu direito ao voto. Assinado, Cidinha. O homem recolheu as assinaturas e dispensou o café. Ainda tinha seis ruas pra cobrir nesta tarde.
5 Comments
Quase uma alegoria para os tempos atuais de tanta desinformação.
Sim, escrevi já há dois anos, mas a situação era essa, mesmo. Quanta angústia.