
Quando eu era criança, não sabia comer uva porque eu tinha medo de engasgar com o caroço. Pelo mesmo motivo, fui uma adolescente que não tomava remédio em comprimidos, só em gotas. Como tudo na vida, isso pode ser caracterizado como um transtorno psiquiátrico chamado fagofobia que pode levar às pessoas a um grau de ansiedade tão grande a ponto de recusarem se alimentar por medo de engolir. O que não era o meu caso obviamente: eu só tinha problemas com uvas e comprimidos e isso a psiquiatria ainda não nomeou. Os populares diriam que eu era lerda e medrosa e não estariam mentindo. Os analistas me perguntariam sobre meus pais e não estariam errados.
Adulta, os motivos para engasgar podem ser um tanto desagradáveis e, pior, eles não vêm com aviso de potencial engasgamento, como a oferta de um cacho de uvas ou um comprimido a ser tomado.
De repente, você ouve uma ofensa que te pega desprevenida. Você não sabe responder na hora porque literalmente sua garganta está bloqueada, aquilo não desce pra digestão e nem é vomitado pra fora do seu corpo. O momento de retrucar se perde e, pronto, você ficou com aquilo engasgado. Às vezes a ofensa é tão indigesta que se demora um bom tempo com aquele desconforto e quando você consegue um antiácido, isto é, transformar o desconforto em palavras e jogá-las ao vento, ainda assim a acidez na garganta e um sabor amargo na boca permanecem e voltam como refluxos ocasionais.
Traumas também são bons motivos pra engasgar. Li que a origem da palavra “trauma” vem do grego antigo “ferida” e, no plano psíquico, poderíamos pensar em feridas que não se fecham. Na definição médica, leio como os traumas físicos acontecem: “lesão corporal que é grave, súbita e inesperada”. O fato é que você nunca está preparado pra uma situação traumática, seja ela física ou emocional. Na verdade, você nunca está preparado pra nada, mas tanto eu como você gostamos de nos iludir com a ideia de controle. Acho que o trauma te deixa engasgado pra vida toda. Isso nem sempre é ruim, aprendi que conhecer o meu próprio trauma me ajudou a desengasgar, a deixar o ar passar de novo pela garganta. Como agora eu e o trauma estamos íntimos, até gosto dele, a gente bate uns papos e ele concordou em não me engasgar desde que de vez em quando eu fale com ele.
Reprimir os desejos e quem se é também nos deixa engasgada. Um dia, caminhando na rua, comecei a me sentir um pouco tonta e, de repente, engasguei sozinha com a minha saliva. Sensação estranha essa do seu próprio corpo estar te sufocando. Puxava a respiração, tossia e engasgava. Foram só alguns segundos até eu conseguir normalizar a respiração, tempo suficiente pra eu entender que eu não queria mais viver dessa maneira, engasgada por não ter a liberdade de ser quem eu sou.
É inevitável, sei que ainda vou me engasgar nessa vida. Pensar assim faz o medo de engasgar diminuir um pouco e mesmo sem ter respostas espontâneas pra um desaforo, ou respirando com dificuldade, ou cutucando feridas abertas, eu digo:
Gaguejei, as palavras me saíam
silábicas. A voz vinha de lá
de dentro da garganta —
boca-de-lobo que tudo engole
restos, porra e vitupério.
Não, agora a voz vinha
exuberante um vulcão
saindo do fundo
do peito do fundo da terra
para explodir,
resplandecente.
*Imagem: Cratera do Vesúvio, Nápoles, Itália. Fotografia da autora.
3 Comments
As emoções são os alimentos da alma. Algumas descem como suco de maçã, outras como maionese estragada. Os traumas ficam ali na boca do estômago, covardes, se recusam a mergulhar no ácido e seguir o rumo da saída das impurezas. Há traumas que decidem morar na garganta, levantam casa de alvenaria, atrapalhando o caminho. O esôfago tem o músculo mais requisitado de todo o nosso corpo emocional.
“Na verdade, você nunca está preparado pra nada, mas tanto eu como você gostamos de nos iludir com a ideia de controle.”
Falou, Carolina! As preparações para os momentos Xs são distrações, divertimentos, exercícios mentais para desviar, disfarçar a ansiedade.
.Nunca vou me esquecer daquela veze em que me engasguei com um bom bife ao ponto, a sensação de pânico em siufoco com aquela coisa atravessada na garganta, eu sozinha na minha aflição enquanto todo mundo em volta se esbaldava no baile de Carnaval. Também, quem manda jantar durante um baile de Carnaval.
Assim é com certos absurdos que ouvimos e engulimos por aí. Línguas viperinas que ofendem. Ouvidos e gargantas delicadas que temos. Vivendo e aprendendo a (des) conviver com o fel.
Texto verdadeiro, bonito, bem dito, refletido.
Obrigada, Julia, pela bela interpretação e por essa história, um tanto hilária, sobre engasgar. Daria um bom conto!