Encomendaram um texto desconjuntado, quero dizer, desprovido de conjunções e advérbios em prol da forma concreta enxuta, ausente de senões, nuances. O pretexto é exercitar a escrita, liberando-a de certos aplicativos gramaticais. Imaginem! Textos gostosos e palatáveis são sonoros, cheios de vitalidade gramatical com verbos, advérbios, substantivos o total se cruzando, reforçando e enfeitando. Mesmo assim, quem sabe, o relato abaixo, desprovido de adereços e bling-blings, tendo em vista a veracidade do fato, poderá agradar aos que apreciam ingênuos e simples relatos do dia a dia. Confiram:
O bondinho sai da Estação Central carregando mães, bebês, carrinhos, estudantes, malas, turistas. Verão de calor inédito. A morena de shortinho, top, sandálias havaianas, consegue um assento individual ao lado da porta. Espaçosa e despojada, cruza as pernas. Tira um estojo da mochila, pega uma lixa, começa a fazer as unhas do pé. O esquerdo, o direito. Os passageiros, atônitos e divertidos, se esquecem por alguns minutos de consultar o celular. Onde já se viu! O bonde dá a partida, sacolejando, a jornada é repleta de abalos sísmicos. Olhos fixos no trabalho, precisão extraordinária, mão firme de cirurgiã, cada unha é esmaltada de cor vermelho morango.
A operação termina, ela ensaia um sorriso agradecido.
Sem hesitar, retira uma pinça da bolsinha – deve ser profissional – arregala os olhos; de ferramenta em punho, passa a remover os pelinhos da sobrancelha. As pessoas se acotovelam para acompanhar o procedimento. Que abusada! Indiferente, num movimento calculado, ela se levanta; do seu estojo polivalente saem cartões que distribui entre os passageiros. Dá sinal, tchau, desce. A publicidade é feita em três línguas, três “Emes”: manicure, maquiladora, massagista. Marketing “live”, perfeito, atrevido, inovador. Mais um verão que passa por aí, ligeiro, festivo, cheio de luz, de novidades. Eu vi.
5 Comments
Crônica divertidíssima. Um retrato de nossos tempos corridos e de concorrência acirrada. Acompanhei os gestos da personagem e o desenlace de sua performance. Ação e narrativa se completaram. O burlesco transparece no olhar da contista que demonstra estar atenta ao cotidiano de sua cidade. Parabéns!
Que texto mais gostoso, palatável e sonoro! Você nem precisou de bling-blings rs! Ficou ágil e se vendeu lindamente, tal como os serviços da moça atrevida. Adorei.
Pois é, aqui tem até um vídeo que rolava na estação de Charing Cross mostrando uma moça aplicando ‘mascara’ ou rímel nos cílios e no sacolejar do trem que acabava borrando o rosto na tentativa de se maquiar; tinha até um cunho de críticas e ridículo; nunca entendi porque, afinal porque não se maquiar / embelezar em público? Acho ótimo, sinal de vitalidade cultural; qdo as unhas, tb faço no trem, por falta de tempo, mas só arrisquei um basesinha rapida. O vermelho deixo p/ as mais arrojadas e precisas na aplicação…
Mônica
Contente com teu comentário! Vi outras no Rio fazendo o olho. Não estou certa mas creio que esta moça queria mesmo angariar mundos e fundos e foi direto ao assunto. Criativa, com certeza!
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Maravilhoso depoimento!!
Vi uma assim no ônibus e fiquei embasbacada e aflita com a destreza da moça: se maquiou de maneira impecável no balançar de um ônibus no Rio de Janeiro. Sem borrar. Não sei o que pesa mais por aqui e que leva a moça a tal desafio: a técnica apurada ou a falta de tempo mesmo. rs