
Certa manhã apareceu-me sobre a toalha da mesa uma fileira de formigas. Carregavam o suprimento do dia, farelos do pão que eu acabara de comer. Uma delas se afastou para pegar uma migalha esquecida, outra a seguiu para ajudar, as duas retornaram ao cortejo, passos combinados. A sincronia lembrou-me, É hora. Larguei desajeitadamente a xícara na mesa. Algumas formigas morreram esmagadas, outras fugiram em alvoroço. Limpei a tolha e fui me arrumar.
Vesti uma roupa leve e clara. Percorreria a pé parte da avenida onde fica a firma em que trabalho. Caminharia depressa, bolsa junto ao corpo, olhar fixo à frente, como os outros passantes. Nos primeiros dias esbarrava em quem seguia o fluxo. Depois me alinhei aos demais.
É minha segunda semana no escritório. Lá tenho uma mesa, um computador e uma cadeira de girar. Em torno de mim há três paredes baixas, de madeira aglomerada, que separam os colegas da direita, esquerda e frente. Cada quadrado é uma cópia do outro. Para identificar o meu, conto até seis. Ele fica na metade do corredor do canto. Sobre o trabalho em si, recebo notas fiscais que chegam por e-mail, confiro valores, preencho os dados dos clientes e devolvo ao colega do lado direito.
Ao final do dia, bato o ponto, corro para o elevador e chego logo à rua. Centenas de pessoas, olhos em transe de urgência, avançam. Eu sigo a corrente humana. Um barulho. Estanco. A multidão se espalha. A maioria corre para o buraco do metrô. Eu fico no chão, as pernas esmagadas pela marquise que caíra. Ao meu lado há pessoas mortas sob o peso do concreto.
Acordo no hospital. Olho em volta. Camas à direita, à esquerda, em frente. Camas brancas, lençóis brancos, camisolas brancas e paredes brancas. Fecho os olhos. Sonho, talvez. A fisgada no braço me traz de volta. Uma enfermeira sorri, mostra uma seringa e alguma esperança. Olho para a janela. A vida continua. As pessoas correm, trabalham, dormem, correm e trabalham.
O médico chega e atesta, Você levará vida normal. Olho suas pernas bem plantadas no chão e viro o rosto para a parede. Ele insiste, gentileza de vendedor, Foi preciso. Diante da minha indiferença, faz uma pausa e muda o estilo, Infelizmente foi necessário amputar seu membro inferior esquerdo.
Fujo, vou para longe. Eu criança, meu pai, uma semana antes dele morrer. Está deitado na rede a observar pardais e insetos que voam pelo quintal. O silêncio reforça piados, zumbidos e soluços. Meu pai a me consolar, Morreremos todos, eu, a mosca e o passarinho, as cidades e as estrelas. Tudo se acaba. Lembro bem, os olhos dele brilham, ele aponta, Veja aquela luz, aquela ali no alto entre as folhas. Não há peso e é algo.
Ao voltar à enfermaria o médico não está mais ao meu lado. A luz florescente ilumina o ambiente triste. Meus olhos passeiam em busca de algum sentido. Procuro em cada canto, nas paredes e no vazio deixado por minha perna. Pergunto, Para que tudo isso?, e me agarro aos detalhes e às miudezas que preenchem qualquer lugar.
Vejo uma aranha. Ela faz seu trabalho na borda da janela. Tece sua teia em delicados e resistentes fios. Há intempéries. Ela persiste. Há a incerteza da vida, a vertigem e a angústia. Eu continuo. Minhas dores me pertencem. Minhas alegrias também. Existo, existimos. É algo. Mesmo que seja somente uma sombra, um sopro ou um quase nada a nos movimentar.
3 Comments
Uma coisa que sempre admiro nos seus textos é a imprevisibilidade, sua capacidade de surpreender, sempre. Eram só formigas enfileiradas na toalha, mas também era uma tragédia e era a reflexão que cala fundo sobre o inesperado e o efêmero da vida.
Você pintou uma visão muito concreta, criativa e rica sobre os perigos dessa vida (são demais!) e a finitude de todos nós, seres animados, usando essa metáfora tão diferente, a das formigas.
E num sopro, num movimento brusco, num acaso, tudo muda. Não temos controle sobre isso. Essa é a substância assustadora e misteriosa da qual é feita a vida.
Lindo o paralelo que você fez com as formigas!