
“Durante a noite não eram despertados pelos cantos de sereia dos peixes-boi nas pontas de areia, e sim pela baforada nauseabunda dos mortos que passavam boiando rumo ao mar.” (Gabriel García Márquez, em “O Amor nos Tempos do Cólera”)
De todas as coisas nas quais nunca acreditei, a forma com que Florentino Ariza e Fermina Daza se entregam à deriva do amor – enquanto o continente é tomado pela epidemia do cólera – ocupa o topo da lista. Uma paixão anciã, deslizando em eternidade por águas inventadas, me provoca a certeza profunda de impossibilidade. A única coisa que me parece plausível é o colarinho de celuloide usado por Florentino: esfolando seu pescoço, ainda que sempre disfarçado por um laçarote de seda. É ele sozinho, o colarinho rígido, o responsável por garantir a obstinação do personagem, detendo qualquer ato furioso que comprometa a realização de um desejo tectônico, sedimentado durante mais de meio século.
Penso muito em Florentino, não por arrastar um amor devoto a alguém que ainda não pude tocar, mas por me intrigar sua persistência indestrutível diante de cenários onde a derrota é contada como certa. De resto, tirando tudo o que há de romanceável, sobra apenas o surto virótico, o terror e a disputa entre permanecer vivo e morrer, entre o inconcebível e a narrativa do real. Faz calor no Caribe, e também no país do dia D, mas me pego abotoando a blusa até o gogó, mirando um alvo pesado e nebuloso em sua linguagem. O tanto que desconfio de heróis como Florentino é proporcional à atração que exercem sobre um pedaço de mim que insiste em respirar, ainda que alimentado pela dose diária de indigência que nos desafia à pergunta recorrente: para quê poetas…?
Poucos talvez percebam – e, se assim for, tanto melhor para a estratégia utópica –, mas desconfio que, por trás da aparência florentina de controle, uma onda poética violenta se avoluma a conta gotas, palavra por palavra, verso a verso. A partir de um barco a salvo do continente em cólera, se reconstrói a força símbolos, plenos em seus dizeres inaugurais. Na hora H, seus tripulantes tomarão a costa de surpresa, triunfando sobre o caráter minúsculo dos que lideram o fim do mundo.
Penso muito em Florentino, menos por sua insistência em amar que por sua determinação em suportar o pulso estrangulado do tempo, forçando a gola, o botão da vida… convencido de que mais que a morte, é ela a que não tem limites.
3 Comments
Um esforço de esperança saído do apertado da vida. Crônica poesia para os tempos de cólera, de covid, de fascismo. Calamidades entrelaçadas entre realidade e ficção. Sem faltarem os vislumbres de possibilidades de amores e triunfo diante daqueles que trabalham, cruel e diariamente, pelo fim do mundo.
Eu também tive muitas dúvidas daquela paixão à deriva! Mas gostei muito da forma sutil e envolventen em que você encaixa os personagens no momento atual. Deu vomtade de reler
o livro.
Boa chamada “o caráter minúsculo dos que lideram o fim do mundo….
Muito interessante esse parelelo entre a obra literária e nossa vida real que por vezes parece enredo de uma série sinistra e de mal gosto que parece não ter fim. Precisamos ter a obstinação de Florentino. O amor há de chegar!