Meu relato é simples, desprovido de alegorias, metáforas, arabescos. O objetivo é o de contar um fato coloquial, porém curioso que, de certa forma, minou a confiança no trato com os próximos. Sem mais delongas, vamos lá. Vou relatar em duas partes, no estilo conciso que conhecem algo banal ocorrido há pouco tempo. Comecemos:
Capítulo 1
Ela chamava logo atenção, pois tinha pernas, digo pneus, fortes, um traseiro amplo, bom de sentar, e na parte lateral duas bolsas verde e rosa, cores da Estação Primeira de Mangueira. Em outras épocas, era mais veloz e prolixa de itinerários, com o tempo ficou recolhida e cansada. E não foi só por causa da Covid, não. Sempre a cultivei pelas suas qualidades: democrática, barata, fácil de largar em qualquer lugar, dá a sensação de liberdade que nenhum outro veículo semelhante me proporciona e, além do mais, é excelente para manter a forma. No entanto, peca pela notória leviandade, se deixa levar facilmente, não obstante aos mal guardados e infindáveis segredos, cadeados, chaves. Tem vários modelos, marcas, estilos, pode ser de rua, de montanha, urbana, híbrida, dobrável, elétrica, fixa. A Mangueira era simples, bonita, clássica mas se transformava durante nossa ação e interação.
Portanto, podem imaginar, fiquei muito chocada quando, outro dia, pronta para o meu passeio diário não a encontrei lá à espera, debaixo da marquise onde se recolhia. Rodei pelo bairro todo, olhei, dei buscas, nada! Justamente agora neste período difícil, ela facilitava minha vida. Pues, Mangueira se fué!
Capítulo 2
Fácil de usar e carregar, era a minha saia predileta. De fundo creme, rajada de marrom e preto, enroladinha, ela se aninhava em qualquer bolsa; acompanhando-me para os cantos do mundo, em todas as estações do ano; ficava elegante com botas pretas ou marrons, sandálias, se dava bem com muitas blusas, não amarrotava, e, apesar do excesso de exposição, sempre foi elogiada. Puxa, ela ainda está em forma! Nossa, como dura! Um dia, ela desapareceu, sem mais nem menos. Como, quando, quem? Coisas inexplicáveis do cotidiano. Fiz de tudo, procurei-a em todos os lugares, até no buraco negro aqui em casa; cheguei a ponto de apelar para São Longuinho, prometendo dar três pulinhos ao encontrá-la. Mas qual o quê!
Certa tarde, andando por aí, dei de cara com ela, solta, à vontade, saracoteado ao vento na garupa de Mangueira, na cintura da ex-vizinha; a simpática espanhola que costumava vir para um cafezinho, até, de repente, se mudar para outro bairro. Minha dileta saia na minha sociável bicicleta. Gritei, corri, mas não pude alcançá-las. Fizeram ouvidos de mercadoras. Desde então venho praticando a difícil arte do desapego. É que do mundo nada mesmo se leva.
5 Comments
A vizinha não me afetou, mesmo com toda deselegância de se apegar ao que não lhe pertencia, pois com certeza não terá nunca com os protagonistas a relação que transborda com nossa narradora: intimidade. Acho que é disso que esse texto nos fala. Da intimidade que desenvolvemos com as coisas que fazem parte de nossas vidas. E aí sim, o desapego é um difícil exercício. Texto para pensar. Muito!
Crônica sobre os objetos nossos de cada dia. Eles nos afetam e deixam marcas. Quando desaparecem – ou nos abandonam (?) – e não há o que fazer, resta a sabedoria apresentada pela autora. Bom humor e desapego resignado.
Fiquei com raiva da vizinha e entendi que me apaguei à mangueira na sua simplicidade e à saia só por esta lembrar a mangueira já que ganhou um capítulo também. Se o conto é bom, provoca mais apego que desapego.
Há coisas difíceis de desapegar. Noutro dia um vestido florido que diziam me fazer parecer uma figura de quadro impressionista, rasgou de tão velho. Ainda não consegui jogá-lo fora. Ele guarda tantas memórias…
Que ódio!!!!espanhola filha da puta!
E é mesmo. A vida é um apegar-se e desapegar-se. Treino constante. Até que a vida se desapegue de nós.