
No dia seguinte seria a festa de aniversário da minha avó. Eu dormia ao lado dela quando acordei com uma dor de coração que se contorcia e pulsava dentro do ventre. Deslizei devagar até o banheiro segurando o peso daquela dor desconhecida. E fui surpreendida com um tom encarnado gotejando em minha aurora. Não havia cortes, arranhões, apenas uma ferida aberta que não fecharia mais. Mês a mês essa ferida renasce e sangra.
No dia da festa, todas as pessoas ficaram orgulhosas da minha emancipação uterino-ovular. Minha avó, orgulhosa e alegre, proclamava a novidade aos convidados. Eu me encolhia de vergonha e indignação. Como podiam celebrar o fim da minha infância? E um fim assim tão dolorido! Só pensava na areia branca da praia, no banho de sol, nas águas geladas em que me banhava, nas brincadeiras de correr que eu adorava.
A partir daquele dia, uma vez por mês eu não poderia mais ser eu, pensava. Seria uma outra qualquer moribunda esperando os dias passarem. E minha profecia se realizou. Nunca mais fui a mesma. Agora podia engravidar, dizia meu pai. Minha mãe concordava com olhos marejados de preocupação e alegria. Minhas bonecas foram ficando num canto escuro da memória e eu fiquei ali em outro canto sem pertencer mais a lugar algum. Até hoje.
4 Comments
Belo relato desse momento complexo da vida de uma mulher… em nossa sociedade, é difícil não viver a menarca com um certo trauma ou culpa…
Muito bonito. Conexão entre infância, ancestralidade e rito de passagem.
Percebi que nossos textos dialogam ao tratarem do corpóreo e do incorpóreo feminino.
Obrigada pelas gentis palavras, Júlia!
Muito lindo, reconhecível e poético como você Mônica, neste teu rodopio pela,prosa!
Júlia