“Lá estava seu quadro. Sim, com todos os verdes e azuis, as linhas subindo e se cruzando, a tentativa de alcançar alguma coisa. Seria dependurado no sótão, pensava que seria destruído, mas que importa?” Virgínia Woolf

O avião sairia em 50 minutos. E em meio a profusão de sentimentos que a invadiam, a imagem mais forte que lhe vinha à mente era daquele bloco de carnaval cantando Ó abre alas com um estandarte nas cores do seu quadro abandonado.
Pensou na mãe. Naquele guardanapo perdido nos meios daquelas fotos nunca lembradas e escrito no aeroporto de Fortaleza em fevereiro de 2000.
Estou tão só que tenho a impressão que nem mesmo eu estou comigo.
Por que tanta solidão? Será que era carnaval?
Será que dentro do taxi, na ida para o aeroporto, a mãe também olhou algum bloco passar? Em que ela pensava? Em quem ela pensava?
Ou não pensava em nada? O pensamento às vezes, também seca.
E a música continuava em sua cabeça.
“O abre alas que eu quero passar”
Ao olhar o relógio se deu conta que ainda faltavam 45 minutos.
Como pode ter pensado tanto em somente cinco minutos?
“Eu sou da Lira não posso negar”
Que gente linda era aquela cruzando a avenida?
Todos suados, melados de purpurina e quem sabe de cerveja e beijos derramados.
“Rosa de Ouro é quem vai ganhar”
E pensou: Voltar agora, em meio ao carnaval, depois do enterro, sem sequer sentir a ausência.
Por quê?
Será que nada importa?
Ela começou a se dar conta que importava sim, e que importava muito um quadro abandonado, uma mãe enterrada e uma gente linda abrindo alas querendo passar.
E retornar pra uma casa de paredes brancas, sem quadros. Retornar para um jantar gourmet sem tempero de mãe. Retornar para um casamento descolorido, com beijos civilizados e sexo antisséptico, por causa de um jantar de negócios, que renderia dinheiro para um marido já tão desconhecio.
“O abre alas que eu quero passar”
Nesse momento a voz do autofalante fazia a última chamada do seu nome para o embarque. Foram quase quarenta minutos de devaneios, lembranças em verde azul e desejo de purpurinas e beijos molhados.
E num desatino, como o daquela moça do Chico, ela correu pelo aeroporto afora até a saída, entrou no primeiro taxi e pediu:
Moço me deixa por aí, em algum bloco de carnaval.
4 Comments
O contraste do Carnaval, cores, alegria, aquelas marchinhas inesquecíveis e o luto da moça. Muito bem bolado, dosado e colocado, Dora. Muita sensibilidade.
“Estou tão só que tenho a impressão que nem mesmo eu estou comigo”. Bonito!
Júlia
Como no texto da Julia, achei o seu conto libertador. A intuição não pode ser freada pela razão, uma metáfora sobre muitas situações da vida, mas principalmente sobre escrever.
Adorei como vc incluir a música da Chiquinha Gonzaga no conto!
As voltas que a mente dá, seu tempo próprio, nem linear e nem encaixado em minutos de relógio. A dor, a fuga e o render-se em mistura de sentimentos. Os Devaneios de Dora seguem a “tentativa de alcançar alguma coisa” descrita por Virginia. Seria loucura, não fosse literatura.
Texto que costura uma bela colcha de retalhos de memórias, desejos, desilusões e alguma esperança de que a vida seja em alguma medida um suspiro de carnaval.