Deus é o existirmos e isto não ser tudo.
Bernardo Soares
Mais um dia em que as horas já nasceram mortas. Sinto como se só de estarem vivas, todas as coisas já tenham passado, sejam outras coisas que não vida. Pensamentos assim fazem muito barulho e não me deixam dormir. Existir é o bastante para que eu esteja viva?
No esforço para adormecer, lembro das coisas que a vida já levou. A casa sem cor, quando eu ainda achava que aquilo era o mundo. O pai, antes que eu soubesse o que era saudade. O juízo da mãe, aos poucos. Dos cinco irmãos, dois. Um filho. Os olhos do meu homem. A força pra resistir quando me pôs à prova.
No meio do sono o ar me falta. O corpo rígido. Os pulmões parecem pedra. Tento me concentrar, o ar precisa entrar. O peito aperta. Mantenho a calma e ordeno ao meu nariz que respire, às minhas mãos que se mexam. Uma arfada redentora. Meus olhos se abrem e a escuridão é absoluta. Procuro pelas previsíveis frestas de luz, mas elas já não estão mais lá.
Escuridão, escuridão completa. As pupilas dilatando muito lentamente. Minha mente diz que posso me mover. Mexo os dedos das mãos, falange após falange. Arrisco um pequeno giro com o pé direito. Sussurro procurando por ele. Não há resposta. Um silêncio parecido com paz. Finalmente ergo o braço, que encontra um obstáculo instransponível logo acima de mim.
Depois do braço, tento dobrar a perna. O joelho se depara com o mesmo obstáculo. As duas palmas das mãos encontram uma superfície lisa logo acima do meu rosto. Ao tentar mover as pernas, ambas são contidas pelos lados. O coração dispara, o ar volta a faltar. Tudo gira. Uma pontada aguda no estômago, náuseas. Suo por todos os poros. Estou enterrada?
Se morri, parece que isso não foi definitivo. Volto à vida, enclausurada num caixão barato, no solo. Porque pobre não tem jazigo perpétuo, mausoléu familiar ou coisa que o valha. Pobre é jogado num buraco no chão, com pazadas de terra por cima.
Pavor completo, mas ainda tenho forças para pancadas que não surtem efeito. Meus gritos e clamores devem estar se dissipando no cemitério vazio. Arranho as paredes de madeira até me caírem as unhas. Quanto tempo até que eu remorra? Quanto de ar me resta? Melhor que apague logo. Não apago. Já não tenho esperanças. Imploro pela morte.
Lembro que eu tentava dormir e agora, enterrada e viva, sigo por horas. O desespero e os gritos aos poucos se transformando em murmúrios. Que eu morra, que eu morra, repito como um mantra. A morte não vem. Sinto o corpo inteiro inchar. Os olhos afundando, uma tela viscosa sobre minhas córneas. Quero morrer ou quero dormir?
Não há mais ar no meu minúsculo cárcere, meu sangue não circula, o tempo foge de mim. Já não me mexo, se é que me mexi antes. Não, acho que não voltei dos mortos, eu estou morta. Começo agora a temer a imortalidade da minha consciência. Haveria castigo mais terrível?
Minha pele está coberta de vesículas e meus órgãos desmancham. Um líquido viscoso escorre pelo canto de minha boca. O corpo continua a se avolumar de forma grotesca. O abdômen finalmente se rompe. Quero dormir ou preciso acordar?
Legiões de bactérias devoram meu corpo, depois insetos. Tento me lembrar da vida, mas tudo está imóvel e todas as coisas são nada. Morta-viva eu vivi?
Sigo na minha insônia perpétua. Os dias todos iguais. Uma vontade de não ter pensamentos. O desejo inerte. A vida como uma intermitência entre a morte e a morte. A vida, ela mesma, a morte.
Cadáver desperto, se desfazendo em chorume, sinto um vazio imenso, daqueles só possíveis no instante exato antes do alívio. De repente, o silêncio já não grita mais em mim. Acostumar-se também é morrer.
4 Comments
Texto crítico, existencialista e aberto a diversas interpretações. Se no plano individual sobressai a indagação “Morta-viva eu vivi?”, em uma visão mais ampla ganha destaque a afirmativa “Acostumar-se também é morrer”. A mim, ao final da leitura, martela a pergunta, Se existir não basta, de que é constituída a vida, afinal? Não importa a resposta, mostra o conto. A pergunta é que é a questão.
A primeira leitura gerou em mim uma angústia crescente. Suas palavras me colocaram dentro da prisão dessa personagem. A segunda leitura me deu a oportunidade de superar a angústia e refletir sobre tantas questões existenciais possíveis de se ler no texto. Para mim, a principal é: na prisão em que somos nós com nós mesmos, que nós realmente somos?
Com suas palavras, vc passa muito bem a sensação de desespero existencial e físico. Gosto das perguntas “Quero morrer ou quero dormir?” e “Quero dormir ou preciso acordar?” que mantém a ambiguidade angustiante da situação da narradora. E a primeira pergunta é fundamental “Existir é o bastante para que eu esteja viva?” – achei o texto bastante filosófico e gosto de textos que nos dão mais perguntas do que respostas.
Que suspense e desassossego ler o relato bem elaborado do portador dessa síndrome terrível!
“De repente, o silêncio já não grita mais em mim. Acostumar-se também é morrer.” Sentimentos do momento atual. Muito bom!