
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas… Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos …Na mágica tarefa de viver!
Florbela Espanca
Fácil e exaltada é a recordação da infância – mas quem não a tem? Quando ainda não provado o fruto da tal árvore, tudo parecia ser flores e risos. Só que não. Medos, bruxas, fadas, sombras tiram o sono e entram de repente no aposento. Um galho se mexe lá fora. Será um monstro ou apenas o nostálgico choupo da Florisbela? Mas… há sempre o colo da mãe e um soneto de Chopin vindo lá da sala. A esperança de que tudo passe mais tarde, muito mais tarde quando tudo ficará nos seus lugares. Mas… que lugares são mesmo esses? Uma poesia onde os sentimentos íntimos carregados de feminilidade e algum panteísmo reflita uma vida exaltada e inquieta? Um livro de culinária com receitas coloridas e elaboradas que falem no ato devocional que representa cozinhar?
Não, quando tudo estiver mesmo nos seus lugares talvez faça mais sentido conhecer terras e mares desprovidos de memória, imaculados, virgens de qualquer lembrança, solos nunca pisados onde plantas e ramos verdinhos, jamais visualizados balançam leves e livres, incólumes de recordações, numa selva à beira de um rio nunca banhado duas vezes. No entanto… já que choupos e seus xarás, os álamos, não povoam florestas tropicas, um araçá – do sertão, a elegante Eugenia stipitata, nascida e criada na Amazônia, será mais coerente. Pois é uma árvore de casca lisa e escamosa, fruto polpudo e saboroso, sem reminiscências de invernos ou de primaveras de outrora… tornando tudo puro, autêntico, isento de expectativas, sem pecado original. É que a verdade está sempre virada para nós como afirmava aquele gênio russo que não nos deixa mentir:
“Nós já esquecemos completamente o axioma de que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro… Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico.”
Fiodor Dostoievski, em ‘Diário de um Escritor’
10 Comments
Texto reflexivo, que propõe muitas questões – “A esperança de que tudo passe mais tarde, muito mais tarde quando tudo ficará nos seus lugares. Mas… que lugares são mesmo esses?”
Como a Eliana, também percebi uma certa mudança de estilo, talvez um tom mais sério.
Li e reli. Percebi um jeito seu diferente de escrever. Sem riso. Um olhar sobre nossas ilusões e expectativas.
Gostei especialmente da passagem “talvez faça mais sentido conhecer terras e mares desprovidos de memória”
Tem razão, Eliana, você é muito observadora, legal ter detectado isso. Desta vez não usei a pegada humorística que sempre apreciei nos cronistas e procuro cultivar. Acredito que com ironia e leveza, o que muitos consideram superficial, a gente consiga dizer quase tudo. E também, por não acreditar que a gente deva se levar por demais a sério. Pessoas sisudas são muito chatas. Porém, desta vez, já que o mar não está (estava) pra peixes na minha praia, mudei o tom e assumi direto um certo lado da minha personalidade, É assim, a ocasião faz o ladráo…
úlia, já li seu texto algumas vezes. A cada vez, uma viagem diferente. Esse seu texto parece se mexer com o vento!
Bom, a gente voar com o vento. Fiquei contente com o comentário seu, prosadora poética que é!
Que Maravilha, Julia! Como o falar por nós preenche sínteses que permanecem vibrando em nosso sentimento unindo pontas soltas a tanto tempo…
Só posso dizer: obrigada, que a continuidade estenda o prazer às paisagens mais inusitadas… beijos.
Obrigada Máli
Eu hoje, superadas as ilusões de pureza da infância, prefiro a verdade das receitas culinárias do livro colorido.
A infância sempre me soa como um bem d’alma que n’alma ficou. E por isso, vez por outra, seja cantinho dolorido de existência que está dentro, mas não voltará jamais.
Belíssimo texto, a verdade nos redime, só existimos de fato, nela. Obrigada Júlia
Obrigada você Elaine! Sim, a verdade de cada um.