Cézanne, para o filósofo Maurice Merleau-Ponty, concebe a pintura como uma pesquisa, pura e desinteressada, assim como fazem os filósofos, e não aceita a vida e nem a pintura puramente visual, quer ser um poeta, um literato, quer realizar a pintura como uma literatura. Quer tirar as coisas de seus lugares comuns, quer realizar essa literatura como um pintor. Tem a consciência de que ao pintar faz filosofia. Decide trabalhar sozinho e em silêncio a fim de investigar as estruturas profundas.
Em Cézanne a planície distante se interpõe a força entre a casa e o morro e nem mesmo o céu se destaca. Na plataforma do trem, como em Cézanne, também meu olhar se interpõe a força entre o trilho e a parede, entre a parede e o teto. Os escuros profundos se fundem e a paleta de tons traz a atmosfera pesada, não contemplo a estação como um espectador no teatro. Estar ali é a maneira de existir, sozinha, entregue a mim mesma, com comportamentos estranhos, tímida, desconfiada e suscetível, como uma fuga do mundo humano e uma alienação de minha própria humanidade, como também queria Cézanne.
Como em Cézanne, busco não estar limitada a apenas as sete cores do prisma, mas a dezoito, vinte, trinta, muitos azuis, muitos verdes, muitos vermelhos… Todos muito diferentes uns dos outros. Procuro não aceitar a vida puramente visual, aquela dada, imposta, quero ser poeta, literato, quero realizar a vida com a liberdade da poesia e a liberdade de poder ser diferente. Procuro não delimitar os contornos nem enquadrar a cor pelo desenho, não quero compor mais a realidade com a perspectiva. Cada um é o que é, o que quer ser, o que pode ser…. Vê o que quer ver, o que pode ver… A estação, a plataforma, os trilhos, a parede, o teto, o urso… Em mim tudo quer, assim como em Cézanne, brigar com as leis. Escapar às alternativas prontas que nos são impostas. Podemos ser quem somos, com liberdade de existir fora dos padrões. Sou azul, sou amarelo, sou estreito, sou amplo, sou linear, sou difuso… Sou quem consigo ser.
A perspectiva a ser vivida é a perspectiva da percepção e não a da geometria. Pode parecer que me desdobro em diferentes planos, em diferentes pontos de vista e perspectivas deformadas, tudo bem, sem problemas, pois o que realmente busco, assim como Cézanne, é suspender todos os vícios e hábitos do olhar e do sentir.
Investigar a pintura de Cézanne é recuperar um novo modo de olhar, o mundo saindo da maneira usual. Uma nova noção de profundidade, uma tentativa de sair das certezas na busca de um novo olhar. Pensar a arte como uma maneira de pensar a vida. O sentido não aquele dado de antemão, mas olhar o diferente o estranho, sair de caminhos já traçados e fugir das regras, tentar fazer a primeira vez como fez Cézanne. Enxergar o diferente trazer a tona o mundo da percepção libertando-o do pensamento racional. Ampliar o horizonte do século XXI assim como Cézanne conseguiu ampliar o horizonte da visão impressionista.
Maurice Merleau-Ponty, A Dúvida de Cézanne.
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos.
127 Comments
Gostei muito desta frase: “A perspectiva a ser vivida é a perspectiva da percepção e não a da geometria”. Vejo o seu texto como um conselho para pensar a minha própria percepção do que escrevo, mas é um caminho difícil “sair das certezas”. Como escrevi no meu texto dessa rodada, “é difícil não ser quem se é”.
É difícil, tudo parece ser difícil, Carolina.
“É difícil não ser quem se é”, é difícil ser quem não se é, é difícil saber até quem somos… enquanto isso sonhamos e fazemos poesia, tentando viver sob a perspectiva da percepção porque as respostas não virão, com certeza, da geometria.
Cèzanne nos ensinou que o olhar não é nem fixo, nem imutável. Os objetos retratados em suas pinturas “dançam” como a querer mostrar facetas ocultas pelas leis da bidimensionalidade. Ao fazer a conexão entre o mundo pictórico do artista e o nosso mundo atual, Ângela nos deu a oportunidade de perceber que nem tudo é o que parece.
Sair do quadrado, buscar o que talvez verdadeiramente somos! Como fazer isso? Talvez Cézanne possa nos dar uma pista.
Angela, como crescemos quando conseguimos ampliar a nossa percepção para além do rotineiro, ampliar os contornos, as cores, as formas, a escuta, as sensações. Sair do estabelecido.Mas nem todos conseguem embarcar nessa viagem que é a amplitude da percepção. A pintura está aí, assim como a vida os fatos, a experiência. Cabe a nós a maneira de percebê-las. E como é rico poder ir além.
Parabéns pelo texto!
Lena, você resumiu: “como é rico poder ir além.” Obrigada, bjs
Que convite irresistível o de nos livrarmos do vício das limitações e horizontes prontos! Análise muito interessante que remeteu a simples imagem do exercício a um trapolim para o sentido mais primordial da arte. Parabéns!
Adorei a ideia, Monica, de que meu texto é um convite. Isso mesmo que eu queria, fazer um convite: que se possa sair dessas noticias ruins, desses pensamentos rasos e direcionados… que se possa, assim como os filósofos e os poetas, ultrapassar o limite e não aceitar a vida puramente ditada e repetida… Entrar na plataforma virtual, surreal, irreal… e partir para além do que se vê. Como em Cézanne, enxergar a força da paisagem além da planície e do morro… Obrigada, bjs.
Angela, já te admirava pela sua generosidade, agora os seus dons superiores de uma grande escrevinhadora .
Lindo !
Avi Villar
Obrigada Avizinha, bju
Muito lindo, uma verdadeira obra de arte! Me fez refletir e mudar alguns conceitos enraizados! Parabéns, Angela!❤️😘
Ligia, é isso mesmo, reflexões filosóficas… para tentar sair da mesmice, tentar aliviar um pouco estes tempos monótonos, de uma nota só, de um cor só! Obrigada,
Sem talento para a pintura, sempre pensei na literatura também uma construção de arte visual.
Que inusitado, Ângela, como partiu da imagem para, como Cézanne, tirar as coisas de seus lugares, ver além.
Seus textos andam cada vez mais elegantes e sofisticados.
Vaneska, pintura, literatura, poesia, vida…. sempre tenho em você uma interlocutora que compreende minhas dores tão fora dos seus lugares…. obrigada.
Angela querida,
Você sempre “arteira”, pegando o trem sozinha na plataforma vazia e viajando… não sei se seus leitores sabem que além de escrever você também “pinta e borda” e a inspiração em Cézanne não acontece por acaso. Deixo aqui registrado o meu conhecimento que sua arte vai além da literatura e se propaga pelas sete cores do prisma e seus infinitos tons.
Muito bom seu texto, concluiu que fazer o trabalho de Cézanne é trabalho de Hércules, mas o que hoje em nossas vidas não requer esforço hercúleo para que haja mudanças?
Nada como uma plataforma de trem… para nos levar para longe, para sair da mesmice de nossos tempos difíceis. Nada como voar, pintar e bordar, ir além, suspendendo os vícios do olhar e do falar… fugir das regras… pegar um novo atalho… brigar com as leis, para quem sabe então, traçar um novo caminho! Obrigada, Anette.
Angela, muito interessante a sua perspectiva, inspirada pelo grande pintor- filósofo. de não delimitar contornos, extrapolando sua visão e percepção para além de padrões e modelos impostos. No caso: a fotografia, a estação, a plataforma, os trilhos, a parede, o teto, o urso…. A capacidade de sair do quadrado ( viu o filme sueco The Square?), da bolha em que vivemos sempre às voltas com a administração do nosso dia a dia, do alheio, do outro, bem, só através da arte, isto é, só mesmo fazendo artes- com os meios que dispomos- é que pode existir alguma salvação. Não é isso?
Isso Julia, não aceitar a vida puramente como ela parece se apresentar, assim como Cézanne não aceitou a pintura como puramente visual. Ser um poeta, tirar as coisas de seus lugares, não estar limitada apenas às sete cores do prisma…. talvez assim a gente consiga pegar o trem na plataforma surreal e “viajar” …