
Como quem corre para reencontrar o passado, mesmo ciente do impossível, quis repisar caminhos. Consumi horas para chegar à conclusão de que deveria voltar ao ponto em que minha vida se bifurcou. Ou, pelo menos, para reviver o momento exato da possibilidade de escolha ou de que algo palpável e real aconteceu
Por um tempo fiquei a martelar ideias como uma máquina quebrada posta a funcionar em caso de emergência. Mas tantas vezes o urgente acabava em esquecimento, que resolvi tudo de estalo e logo comecei a organizar o que denominei jornada de reparação. Comprei passagens e reservei estadia. A decisão trouxe ares de felicidade aos meus dias de mesmice e durante uma semana saltitei feito criança pela casa deserta. Nela não habitam animais, plantas ou qualquer outra testemunha de minha morrinhenta vida.
Cheguei em um dia de pouco sol e, por isso, de poucas sombras a projetar os monolitos fincados no chão. Essa visão sem grandes contrastes nos envolveu a todos em um clima de certa decepção. No entanto, eu e os outros turistas seguimos com passos lentos e gestos contidos de peregrinos a pisar em solo sagrado. Foi preciso chegar à metade do trajeto para que Stonehenge se mostrasse – imensurável, incompreensível – e nos fizesse calar a todos. Como no passado, peguei um fone de ouvido e ouvi as histórias sobre os círculos de pedra, toquei as cordas, vi as mesmas ovelhas que pastavam ao longe, senti o cheiro do gramado e o mesmo vento a zunir nas orelhas. A cerca que isolava o monumento ainda causava a mesma irritação – não consegui mais uma vez o acesso especial ao interior da ruína. Talvez, pensei, a grama esteja um pouco mais verde agora.
Um vento forte passou a soprar. Fechei o casaco e agilizei os passos. De repente, o turbilhão em volta estancou. Deduzi ter encontrado o lugar – difícil saber o ponto exato naquele descampado. Esperei. Foram dez longos minutos de imobilidade e expectativa. Nada. A sensação nem chegava perto da vivida na primeira visita, quando, sentindo um entorpecimento, fui teletransportada para o interior da fileira das rochas milenares. Digo teletransportada por falta de uma palavra melhor. Nenhuma que conheça conseguiria definir o estranho acontecimento que me fez retornar.
Há vinte anos percorria, rodeada de pessoas, esse mesmo lugar. Súbito, me vi sozinha junto às pedras gigantes do monumento histórico, precisamente em um vão estreito encimado por uma laje. Nele, corria um ar gelado e eu, ínfima criatura, me encolhi em um dos dois eixos do portal. Tremia. Aquele desconforto extremo me trouxe uma certeza. Não vivia um sonho.
Em busca de explicação, conferi as paredes. Em uma delas, avistei um círculo desenhado na superfície rugosa. Aproximei o dedo. Toquei-o de leve como quem temesse levar um choque. O disco se mexeu. Depois, destacado da parede, começou a girar. Nele surgiu uma imagem. Um cavaleiro. Ele portava um escudo em um dos braços. No outro, livre, estendia as mãos em minha direção e acenava para segui-lo. Seu olhar transmitia uma tal doçura, que a vontade era de me atirar inteira para dentro do buraco. Em vez disso, a razão e uma voz distante me fizeram recuar. Assim que retirei as mãos do círculo, reapareci junto aos turistas.
O burburinho das pessoas e o sussurrar do narrador no fone de ouvido se misturaram à mudez fugidia do cavaleiro. Uma amiga, que conheci durante a viagem, permanecia ao meu lado e movia os lábios em tentativa inútil de falar comigo. Ela, pelo visto, nem percebeu o meu sumiço. Confusa, corri para a saída. Ao alcançar o estacionamento, entrei no ônibus que nos transportara. Sentei em meu lugar e da janela avistei mais uma vez as ovelhas. Elas pastavam nos prados vazios.
A paisagem, possível no passado e no presente, provocou em mim um sentimento de encantamento tão natural e suave que fez surgir, ali entre as ovelhas, o cavaleiro sorridente a montar seu cavalo conduzido por rédeas e antolhos. Não fosse a presença do veículo a motor, o tempo se tornaria indistinto entre nós dois. Mas havia um motorista sonolento que se assustou ao ver chegar a passageira. Uma vez desperto, puxou conversa, Brasileira? A resposta – Sim – veio automática. Ele emendou rápido, Católica! Sou católico também. Acredito na sagrada família como vocês… Eu sou irlandês…e tagarelava sem parar, incluindo críticas a rituais pagãos nas ruínas.
Eu fingi que dormia e dormi. Sonhei com a família real e Maria e José e Merlin e com o cavaleiro andante, um elmo a esconder a face. Acordei assustada. O irlandês dirigia quieto. O ônibus seguia veloz.
Como dizia, tudo aconteceu há vinte anos. No entanto, não se repetiu o que ocorreu lá atrás. O cavaleiro, para mim existente em corpo e alma – juro, era real! –, não veio me salvar de minha existência banal. Tentei. Refiz o caminho como uma peregrina em busca de salvação. Mas sempre soube. De princesa nunca tive nada. De bruxa, talvez tenha alguma coisa. Um certo anseio – com os mistérios da vida, e uma certa inconformidade – com o peso férreo da realidade.
5 Comments
Que texto sofisticado! Preciso, urgentemente, conhecer Stonehenge e quiçá, o cavaleiro inexistente.
Tem tanta força nesse texto, que nós também seguimos o cavaleiro e nos vemos vendo as ovelhas ao longe. Um texto de sensações, onde as palavras viram gestos e se materializam em nossa frente. Linda viagem!
O que passou, (não) passou? Reencontrar o passado é o mesmo que voltar no tempo? Fiquei aqui me perguntando…
Gostei do modo como o conto lida com o tempo, um ritmo lento, descritivo, para acompanhar o vai e volta da narrativa entre o agora, o logo ali e o muito distante. Distâncias físicas, distâncias temporais, distâncias culturais.
O título me lembrou o romance do Italo Calvino, “O cavaleiro inexistente”. Foi proposital?
Sim. O título é uma referência ao Cavaleiro inexistente de Calvino. É uma homenagem a esse belíssimo livro.
Gostei demais da sua história e realcei certas frases incisivas:
O cavaleiro real que não a livrou de uma existência banal…
Ciente do impossível, quis repisar caminhos…
A decisão trouxe ares de felicidade aos meus dias de mesmice…
O urgente se acabava em esquecimento
Sim, Stonehenge faz a gente divagar no tempo. Tenho uma recordação bonita deste local inexplicável, cheio de círculos e mistérios!