Entro no bar deserto, o único aberto, me instalo na varanda envidraçada e observo o mar cinza e sonso do Norte, aparentemente tranquilo e de boa paz, até a bonança sumir e a raiva surgir. Mare nostrum! Não se brinca com ele. Que é bonito quando quebra na praia, de suaves murmúrios regulares, mas quando irado, enrola a gente nas suas ondas. O vento forte não propicia passeios pela orla. Não sei se o de hoje é elísio ou contra elísio. Cheguei a ficar em segunda época em geografia e desde então criei certa antipatia pela matéria. A figura da professora Clotilde também ajudou. Mal humorada, caolha e manca, ela discorria sobre os detalhes técnicos e científicos de brisas, ciclones e furacões enquanto eu observava a sua imensa feiura, a saliva escorrendo da boca. Por que, de repente, surge esta figura aqui neste terraço à beira-mar? O dono do bar, um jovem forasteiro, provavelmente turco, deposita o bule e um bombom na mesa de vidro.
“Este café vem lá das Arábias, de qualidade e sabor renomado” – diz. Conversador, ele acrescenta que o hábito do café como ritual de sociabilidade é da Turquia, final do século XV e de lá vem a tradição de se ver o futuro através da sua borra. E graças ao comércio marítimo holandês, pela Companhia das Índias Ocidentais, o café chegou ao Novo Mundo. ”E aqui estamos, eu, você nós dois aqui neste terraço à beira- mar”, cantarola ! Gracinha! Faço ouvidos de mercadora para ele e tento me lembrar do horários dos trens, pensando em como chegar em casa, mas logo caio em mim: tão cedo não será, quem sabe seis meses ou mais, dizem que isso pode durar até 2024, já pensou?
“Quis estudar História, mas não deu, precisei ajudar meu pai recém- chegado a este país. Mas aprendi várias artes… Não quer tentar a leitura? Os ventos de hoje são instáveis, não há mais trens, e você é a minha primeira e última freguesa.”
Antes de ouvir a resposta, aboleta-se na cadeira em frente. Insolência? Nem tanto. Seu sorriso é hospitaleiro, o sotaque é suave, os olhos doces, muito verdes, minha cor favorita de olhos. Eu nada tenho mais a perder, nem mesmo tempo. Tomo café lentamente, mentalizo a pergunta. Também eu fiz algumas artes em Alcúbia, Majorca, no hotel Saturno Júpiter Marte onde trabalhei e tive uma relação frutífera com o proprietário, pai do meu filho. E Alexandria, hein, lindo pedaço do mundo, debruçado para o Mediterrâneo, velho porto de entrada de encontros e desencontros? Foi lá que os amigos cabalistas Cléa e Baltazar me iniciaram na cafeomancia.
Nossa, por que logo agora mosaicos da minha história entram assim, sem aviso prévio, na minha cabeça? Volto a mim, cubro a xícara com um pires e viro-a de cabeça para baixo. Ele desvira a tampa, estuda o significado e a posição das figuras e a leitura da borra começa.
“Pelas barbas de Júpiter!”, esbraveja, olhando para o céu.
Nuvens grossas e escuras se formam acima das nossas cabeças, a mesa balança de um lado para outro, as imagens da borra se misturam. Nos mitos da Grécia Antiga, Zeus, o Júpiter romano, tem o poder de comandar as manifestações celestes, tornando-o capaz de produzir chuvas, raios e relâmpagos. Para mim já está de bom tamanho! Resolvo ir me embora para Pasárgada. Levanto-me, deixo 10 dinares de gorjeta, esqueço “aquellos ojos verdes, de mirada serena”* e saio à la José Régio, ciente de que não vou por aí!*
*https://www.youtube.com/watch?v=4cVfGdFjnO8
* Cântigo negro – José Régio
11 Comments
Meninas
Obrigada! Fico muito grata e reconhecida pelos comentários, me incentivam ao esmêror! Tão bom ver esta Roda girando e girando!.
Seus textos, por mais inusitados, sempre me parecem muito críveis, talvez por sua extrema habilidade de descrever cenários e personagens. Esse, em especial, é muito sofisticado, cheio de conhecimento de culturas outras, referências literárias. Me prendeu do início – quando dona Clotilde invade o café -, até o final, invadido e dizimado por Júpiter. Adorei.
Texto de perceptíveis sutilezas.
No cenário, que apresenta o conforto de uma varanda envidraçada a separar e proteger os personagens dos perigos do mundo externo, figurado pelo mar bravio.
Nos devaneios da narradora, que sem cerimônia entram em cena, fazendo aparecer acontecimentos do passado, aparentemente desconexos, mas que valorizam o tom irônico da narrativa.
E na relação desenvolvida entre os personagens, que mostra haver espaço para a sedução, via tradição e magia, em meio a situações de transitoriedade, que acontecem em qualquer tempo ou lugar.
A música “Aquellos ojos verdes” completa a cena de maneira cinematográfica.
Adorei este encontro meio solitário mas com previsões!😘
Julia, que texto tão gostoso de se ler e ouvir. Parece que estamos ouvindo você, em outra mesa, em um bar, em um café em outro lugar, contando suas memórias de viagens. Até o cheiro do café turco se materializa nessa tua contação deliciosa. É isso uma contação de histórias capaz de prender o ouvinte e transportá-lo para aquela mesa, diante daqueles “ojos verdes”. Muito lindo.
um história dentro de uma história dentro de uma história. realmente, um mosaico! gosto muito desse tom meio crônica, meio conto. e adorei as referências!
Parece um instante e é num instante que tanta coisa acontece, inclusive o mundo muda!! Muito boa essa narrativa-montanha-russa!
Viajei com este texto! Vou ali tomar um café! Ali na cozinha, no caso….
Parabéns!
Marina desde México.
Q texto delicioso! Parece q a quarentena lhe inspirou mais ainda! Adorei!
Alusões:
Clea e Baltasar, 2 personagens do fascinante “Quarteto den Alexandria” de Lawrence Durell relido agora.
Hotel de Alcubide na ilha Majorca ainda badtamte procurado
“Fotografia” de Tom Jobim.
É, sou bem antiga! Quarentena de corona, Holanda, abril de 2020.
Maria Júlia
Júlia, você escreve divinamente, seu humor é uma marca que deveria ser registrada. Adorei o texto, obrigada.
Beijos