Já são quatro da tarde, hora de maior movimento, e a minha missão ainda não se realizou. Estou ansioso. É, fico mesmo. Será que alguém vai me querer? Estou esperando desde a manhã para cumprir meu destino. Quem me fez, bem cedo, devia estar meio sonolenta porque saí meio duro. Mas não tenho do que reclamar, estou posicionado bem à vista, num lugar iluminado, ainda que um pouco abafado e quente por causa dos vidros e das minhas muitas companhias. Ah, a competição. Nem aqui se vive em paz e temos que disputar nosso lugar ao sol, ou melhor, à mesa. Se os clientes pudessem me ouvir, daria uma descrição de mim muito mais elaborada do que a breve etiqueta à minha frente. Admito que meus encantos provém menos da minha aparência do que da reputação da minha grande linhagem. Quanto à primeira, me sinto um pouco intimidado pelo meu aspecto completamente convencional, igual a tantos outros por aí. Espero que não desconfiem que a minha casca ficou dura. Se perceberem, talvez não me levem. As pessoas não costumam gostar de casca-grossa. Uma pena, porque apesar da dureza, sou de uma doçura extrema e, por baixo dessa cobertura de rigidez, sou surpreendentemente fofo e saudável, com um toque exótico. Coisa fina. Farinha integral. Canela, noz moscada e raspas de laranja. Só quem me experimenta é que sabe do meu valor. Porque a minha aparência, ah, tão banal… Difícil competir com sonhos! Esse enjoado da Prússia que emigrou pro Brasil. O que inventou de fazer aqui? E as nossas primas patricinhas, as tortas? Quem não quer um “amor perfeito”, quem não está precisando de um “prestígio” ou de se aventurar por uma “floresta negra”? Como sofro! Vivo em constante estado de alerta, caso uma bomba fique enciumada quando alguém me avalia. Essa turma é perigosíssima. Bacana mesmo são os pé-de-moleque, só aparecem aqui uma vez por ano e fazem a maior bagunça. Gostam muito de sair com os bolos de milho da primeira prateleira. Uns caipiras que se vestem com palha e que fazem um sucesso danado. Por isso estão no lugar de maior destaque. Não me incomodo. Tá bom, me incomodo um pouquinho ainda. Fiz um curso de autoestima. Agora sei do meu valor. Exótico. Coisa fina. Por fora, a cobertura é dura. Por dentro, sou uma fofura. Na etiqueta, bolo integral de cenoura. Agradeço a preferência.
* Receita que inspirou este conto: https://www.panelinha.com.br/blog/ritalobo/Bolo-de-cenoura-integral
Bolo de cenoura integral
175 g de açúcar mascavo
2 ovos grandes
120 ml de óleo de girassol
200 g de farinha integral
½ colher (chá) de fermento em pó
1 colher (chá) de canela em pó
uma pitada de noz-moscada
raspa de uma laranja
200 g de cenoura ralada
175 de uvas-passas
manteiga para untar e farinha de trigo para polvilhar
Modo de preparo
1. Unte uma fôrma de bolo com furo com manteiga e polvilhe com farinha de trigo. Preaqueça o forno a 180ºC (temperatura média).
2. Na batedeira, junte o açúcar, os ovos e o óleo e bata por 5 minutos, em velocidade alta.
3. Enquanto isso, passe por uma peneira a farinha, o fermento e as especiarias. Diminua a velocidade da batedeira e junte os ingredientes peneirados ao creme de ovos. Bata apenas para misturar.
4. Desligue a batedeira e misture com uma colher a cenoura ralada e as uvas-passas.
5. Transfira a massa para a fôrma preparada e leve ao forno preaquecido para assar por cerca de 40 minutos.
Cobertura (opcional)
250 g de cream cheese
20 g de açúcar
2 colheres (chá) de essência de baunilha
Na batedeira, junte todos os ingredientes e bata até formar um creme bem fofinho. Quando o bolo estiver frio, espalhe a cobertura e sirva a seguir.
5 Comments
Que delicia esse texto! Que doce disputa entre sonhos, tortas e o lindo bolo de cenoura. Amei o pé de moleque bagunceiro. A cada frase sentia o gosto doce bom de uma momento de entrega a uma doçura. Imagem e ritmo! maravilhosa essa vitrine poética!
Travessura sobre gostosuras de quem conhece os doces e a escrita. De quem tem olhos de criança para espreitar a vida e enxergá-la em minúcias. De quem olha com a experiência da adulta para encarar as diferenças e as expectativas numa boa. Deliciosa de ler até mesmo por quem tem a casca dura.
Toda vez que eu vejo um bolo mais saudável integral ou sem açúcar eu penso que nunca vão se comparar aos bolos e tortas cheios de recheios e coberturas. Seu conto expressou essa ideia exata e ainda deixa uma reflexão sobre: nesse mundo competitivo louco, roubam nossa autoestima e, depois, nos vendem em livros e vídeo a suposta fórmula do amor próprio. Aproveitei e guardei a receita.
Sou uma açucarada, passo direto pelas comfeitarias para nao cair em tentação, Adorei o doce tão convidativo, as metáforas usadas, a ideia.
Que delícia de crise existencial rsrsrs.
Abriu meu apetite para doçuras 😁😍