
Um dia cheguei em casa, alvoroçada e feliz. Tinha sido agraciada com uma viagem, prêmio no trabalho – méritos indiscutíveis- para o lugar dos meus sonhos. Sou romântica, lírica, devota leitora dos clássicos. Neles encontro desafios, alegrias, conforto, me perco dentro dos labirintos literários. Também sou bastante distraída. Por vezes, esqueço que vou de carro para o trabalho e volto de trem viajando pela paisagem que me transporta à aldeia onde moro. Já o meu marido, um matemático disciplinado, é fissurado em esquemas, horários e regulamentos. Costumava achar graça nos minhas divagações, na minha mirabolante fantasia e ingenuidade. Depois, deu para se irritar. Não, não estou me queixando, apenas constato a evidência com a qual convivo há anos. Éramos muito jovens, casamos, logo vieram os filhos e pronto! Assim caminha a humanidade. Quando a gente cai em si já está dentro da roda viva, essa mistura de dever e devoção. Vivemos em modus prosaicus.
De fato, esta é a primeira vez que viajo sozinha; E. não gostou da ideia mas levou-me ao aeroporto, despedindo-se com a ternura irônica de sempre, bem do seu estilo:
– Vai querida, vai ser gauche na vida!
Canto de despedida? Pura metáfora? Pleonasmo?
Vim. Vim encontrar meus sonhos. Vim parar na fábrica de personagens que desde sempre tomaram conta do meu imaginário. Saio da prosa cotidiana da vida de exemplar servidora pública para entrar nos versos da ilha-continente. Uma região de natureza perigosa, dramática, fascinante, cenário de reis míticos, cavaleiros ao redor de uma mesa redonda, rainhas trágicas, príncipes ensimesmado, todos serpenteando em volta dos jogos do poder. Aqui sou poderosa, ninguém me alcança os passos. Com ou sem celular. A vida é bela.
Aqui me perco entre penhascos, desfiladeiros, contemplo as ondas rebeldes que batem nas rochas. Tenho as vistas mais deslumbrantes da região acidentada, falésias de granito, prados verdejantes sem fim, vilarejos com chalés de madeira. Entro em um castelo antigo, escuro, repleto de lendas, narrativas, intrigas, onde revivo tempos da história, entre o real e o idealizado. Minha cabeça dói, pesa, se atordoa. Uma sensação peculiar de familiaridade e estranhamento. A intimidade com um passado que não foi o meu, com personagens admirados, temidos, louvados. Como explicar?
Meu coração bate forte, o corpo treme.
O despertar é abrupto, com Euclides me sacudindo impacientemente:
–E agora, Ofélia, esqueceste da hora e andavas de novo a viajar lá pelo reino da Dinamarca?
4 Comments
Cabe ao leitor montar o quebra-cabeça de peças espalhadas pelo texto. Mulher casada há muito tempo, servidora pública e dona de casa distraída e sonhadora, a personagem nada se assemelha ao cartesiano marido. Ela, que nunca viajara sozinha, de repente se aventura em terra estrangeira em meio a castelos e penhascos. Um sonho. E os sonhos, na literatura, no inconsciente e na vida, movem o real. Real que não escapa ao sarcasmo e à ironia da autora. Se o “ensimesmado” Príncipe Hamlet divaga, Dormir, dormir…talvez sonhar, a personagem, que é também uma leitora dos clássicos, não deixa por menos, Sonhar, sonhar…talvez dormir.
Muito boa a narrativa que mescla viagem física, literária e onírica. Importante também a presença masculina que pretende interromper a viagem em duas ocasiões. Mas a personagem é poderosa, ninguém alcança seus passos. O território da viagem íntima, este é um reino preservado.
A imaginação nos dá esse poder de viajar, flutuar, realizar sonhos inimagináveis. Quem sabe o que é realizar sonhos? Pegar um avião? Caminhar até o outro lado da rua? Ou para dentro de si mesma?
Fiquei aqui pensando que nunca fui assim distraída. Estou mais para a pessoa organizada, embora tenha deixado essa vida de sacudir as pessoas abruptamente. Mas sempre gostei de viajar na viagem alheia, nas palavras, nos livros e na memória, minhas viagens particulares. E quem pode dizer se memória é relato pra si mesma do passado ou ficções que tecemos para contar a nós mesmas versões mais emocionantes de nossas vidas? Quem sabe?
Amei….Um relato poético onde nos perdemos entre a ficção e registro. Parece aquelas páginas de caderninhos de viagem que viram diários confessionais. De uma realidade vivida para uma realidade imaginada vemos a dona de casa se perdendo entre os personagens e nos castelos de seus sonhos. E o final foi delicioso, com essa interrogação/ação que nos faz seguir a viagem.
Dora.