O trem passou sem parar por uma estação vazia. É noite e todos dormem dentro do vagão, menos um passageiro que anda devagar pelo corredor. Ele se segura cada vez que um solavanco o joga de um lado para outro. De fora, uma luz repentina chega e destaca a silhueta do homem na escuridão, tornando visível por uma fração de segundos o prateado de seus cabelos ralos, o azul lustroso do terno de corte impecável e o brilho dos fechos dourados de sua maleta de couro. São três e meia da manhã e o senhor de terno elegante não parece ter sono ou vontade de dormir.
No exterior à composição ferroviária, além do negrume da noite, uma bruma espessa encobre a paisagem. Somente a memória de viagens anteriores, onde era possível ver campos verdes e casas solitárias com mulheres pendurando roupas ao sol, traz um vestígio de alegria aos olhos cansados do homem. A lembrança de dias ensolarados devolve também um pouco de calor ao luxuoso vagão, onde o ambiente altamente refrigerado parece um pouco exagerado para a época do ano.
O silêncio é quebrado apenas pelo trac trac do trem. O homem repara nos viajantes que dormem embalados por aquele som constante e cadenciado. À direita olha uma senhora com mãos abandonadas sobre um livro aberto; à esquerda, uma jovem com tapa-olho e fone de ouvido; mais à frente um homem com um corpanzil que mal cabe na poltrona estreita. No ar, cheiros indefinidos sugerem uma mistura de perfumes sutis, grama cortada e casacos guardados.
Em pé, diante daquelas pessoas, o passageiro procura lembrar o momento de sua partida. Havia, claro, acenos de mãos, esbarrões de malas e beijos de casais apaixonados e havia ainda uma mulher que a distância foi deixando cada vez menor até que sumiu no horizonte. Lembrou, quando o trem já estava em velocidade, de ter visto pela janela nuvens vagando em um céu de azul profundo e vacas perambulando pachorrentas em pastos verdinhos.
Agora, caminhando ali em meio a pessoas que dormiam um sono profundo, o viajante enfim encontrou alguém acordado. Era uma senhora de cabelos pretos e pele muito clara, vestindo uma túnica branca transparente, pela qual uma luz tênue vinda do alto deixava entrever um corpo magro e pálido. A mulher apontou um lugar vazio a seu lado. Embora ela lhe causasse um certo desconforto, Está vestida no limite da decência, pensou. O cansaço falou mais alto e ele aceitou o convite para sentar.
Mal fechou os olhos, a mulher puxou assunto, demonstrado estar bem desperta naquela madrugada fria, O senhor parece ter algo muito importante aí, disse com um sorriso vago. O homem segurou firme a pasta que carregava e respondeu, Penso que isso não é de sua conta, minha senhora, Fique sossegado, não pretendo roubar e nem fazer mal nenhum. Não tenha medo, Não tenho medo. Só quero que saiba, não há nada de valioso aqui ou que possa lhe interessar, Não vamos brigar por isso, a mulher contemporizou. Para quebrar o gelo, me diga seu nome, …, O homem puxou pela memória. Não conseguia recordar seu nome e nem sequer a imagem do próprio rosto. Assustado, deu um beliscão e perguntou a si mesmo, Estou sonhando? A mulher sorriu, piscou um olho e disse, Digamos que o senhor foi convidado a viajar através de um túnel que o levará a um mundo parecido com o que viveu antes, Como assim, viveu, mundo? Aliás, quem é a senhora? A misteriosa mulher pousou a mão ossuda no braço do passageiro e soprou em seu ouvido, Durma, meu caro, durma o sono profundo. Sua viagem vai começar.
5 Comments
Esse texto “UMA VIAGEM DE TREM” é muito peculiar. Traz muitas recordações. Inclusive escrevi há aguns anos um texto com a mesma temática. Peço permissão para colocar nesse comentário. Primeiramente meus parabéns a escritora Eliana Gesteira.
Viagem de Trem
Até meus vinte e poucos anos, se não me falha a memória, circulava no Ceará o trem de passageiros. Este percorria o trecho de Crato a Fortaleza, e vice-versa, passando por Aurora, minha cidade natal. Este percurso nós os fizemos por diversas ocasiões, principalmente quando da saída e do retorno das férias escolares, pois estudávamos em Fortaleza. E quando havia festa em Aurora era o nosso principal meio de transporte. Neste dia era lotação certa.
Os horários variavam muito. De início o trem saía pela madrugada, de Crato com destino à Capital Cearense. Depois mudou. Passou a pegar o trilho por volta das treze ou quatorze horas. Se eu não me engano, este foi o último horário estabelecido pela REFFESA para este percurso. Com certeza, também foi o melhor para nós que sempre nos deslocávamos para os festejos em Aurora. Daí, pegávamos o retorno pela madrugada, vindo de Fortaleza, por volta das cinco horas da manhã, já nos “finalmente” da festa.
De Crato até Aurora interpunham-se as estações de Juazeiro do Norte, Missão Velha e Ingazeiras. Dentre estas havia algumas paradas obrigatórias. Destas lembro-me somente da parada de Várzea Redonda, a qual fica entre Aurora e Ingazeiras, justamente porque embarquei lá por muitas vezes.
O transporte ferroviário era, naquele tempo, o mais em conta. Mesmo assim, para economizar e gastar no próprio refeitório do trem, em algumas ocasiões, driblávamos o cobrador, e não pagávamos a passagem, ou liquidávamos de uns e outros não, pois era muito fácil fazer isto. Noutra eu conto como fazíamos para despistá-lo. Além do mais a viagem era uma maravilha. Trafegávamos sempre em família e, freqüentemente íamos no restaurante tomando uma cervejinha, beliscando alguma coisa, conversando e, dependendo da sorte, “ficando” como se fala hoje em dia.
Este local chamado restaurante era um vagão preparado para este fim. Tinha garçom, geladeiras, cadeiras, etc., prontinho para curtirmos aquela aventura com tranqüilidade. Sacolejava muito e eventualmente tínhamos que nos agarrar ao que estava sobre a mesa. A gente já era tão conhecido, que tinha “cadeira cativa”. O bom é que, aqui e acolá, sobrava uma garota e a gente “lavava a égua”. Bebíamos e comíamos, ao mesmo tempo, até chegar à estação final.
Geralmente embarcávamos em Juazeiro do Norte. Outras vezes, em Aurora. A primeira estação, quando tomávamos o trem de ferro na Terra do Padre Cícero, era Missão Velha. Ali começávamos as comilanças. Saboreávamos a melhor macaxeira do Ceará. As pessoas comentavam que esta era cultivada dentro do cemitério local motivo daquele sabor inigualável.
Entre Missão Velha e Ingazeiras, já próximo desta, ocorria um fato curioso e pitoresco. Havia um garoto que, trajando-se de Chefe de Estação, a caráter mesmo, logo que notava a aproximação do comboio, vindo de qualquer direção e em qualquer horário, tocava um sino, semelhante ao que se fazia nas estações ferroviárias quando da partida e da chegada dos trens.
Outro fato que merece registro era o momento que o trem passava nas demais estações de seu percurso. Nas cidades pequenas como Cedro, Piquet Carneiro, Capistrano, Lavras da Mangabeira, e todas as demais do mesmo porte, esta ocasião era muito festejada. Todos se reuniam para prestigiar. Eu mesmo não perdia uma passagem de trem. Era muito divertida esta ocasião.
Este meio de transporte jamais deveria ter sido desativado no Nordeste Brasileiro. Era de baixo custo e de alto impacto sócio-econômico. Muitos o usavam para transportar pequenos animais, quantidades inexpressivas de mercadorias. Lembro-me que na estação de Juazeiro do Norte tinha até uma pequena feira livre nas chegadas e partidas dos trens de passageiros. Era um verdadeiro Mercado Persa. Ali se encontrava de tudo. Podia-se procurar que se encontrava até bainha prá foice. “Do penico à bomba atômica” esta seria e expressão mais apropriada para este evento.
No entra-e-sai, e desce e sobe das várias estações, fazíamos novas amizades e revíamos velhos amigos e companheiros. Além de alavancar o comércio com suas trocas e vendas de mercadorias as mais diversas e extravagantes possíveis, o trem de ferro sobre os trilhos de aço, num vai-e-vem apressado e impaciente, também construía muitos amores e paixões, e alavancava muitas esperanças e desilusões.
Por Arimatéia Macêdo
arimateia@gmail.com
Sim! Como disse a Maria Julia, você sabe contar uma história! Sua capacidade descritiva é mesmo digna de nota. Ambientes e personagens construídos deliciosamente.
Vaneska
Eliana, que texto surpreendente! Instigante e com um tom misterioso em palavras muito bem escolhidas. Seu texto possibilita viajar por nossas memórias e vivenciar lembranças de sentidos, uma verdadeira sinestesia. Belo conto.
Suzana Costa
!Gostei muito dos detalhes descritivos dos personagens. Uma história bem contada e intrigante
E Morais
Eliana sempre surpreende com o cenário e os protagonistas que parecem sair de um thriller sutil, puxado ao surreal. Gostei: das mãos abandonadas sobre um livro aberto, cheiros indefinidos sugerindo uma mistura de perfumes sutis, grama cortada e casacos guardados, a mulher vestida no limite da decência. Você sabe contar uma história e deixar o leitor intrigado se perguntando " o que será mesmo?"
M. Júlia