Sorte do Álvaro. No tempo em que festejavam o dia dos seus anos, ele era feliz e ninguém estava morto.
Minha infância foi enterrada cedo, num sarcófago.
Era meu aniversário de cinco anos. O festejo, uma excursão familiar à Quinta da Boa Vista. Kombi do pai apinhada de primos, tios e avós.
Não gostei dos bichos presos. Inundei a roupa nova de suco do piquenique. Rolei na grama e ardi em urticária. Minha irmã menor chorava, medo da girafa. Ainda tinha o museu.
O museu era um lugar esquisito.
Me prometeram ver a coroa do rei, mas não tinha coroa do rei. Só bebês boiando em potes, peixe-espada, dinossauro, meteoro, roupas de índio, índio lá usava roupa.
Uma cabeça sem nariz! A cabeça de quem? Por que tinha o nariz carcomido? Não hesitaram em me dar a resposta providencial: os bichos comeram o nariz, porque a moça metia o dedo sujo pra arrancar meleca. Por muito tempo não futiquei o nariz impunemente.
Um sarcófago! O que tinha lá dentro? Não me deram uma resposta providencial. Ergueram-me de súbito. Uma Múmia. A visão apavorante de algo que lembrava um rosto. As perguntas sem fim sobre a vida e a morte. A inabilidade de quem respondia. A infância arruinada.
Meses depois, novamente ergueram meu minúsculo corpo pra ver o bisavô morto. A palidez e as narinas de algodão, do vô de neve, sentado no banco da cozinha, da casa fria de chão de madeira, no alto da serra.
Depois desses eventos passei a ter medo. De perder as pessoas, de perder a vida, de perder o nariz.
Malditos os que erguem crianças e lhes roubam a paz.
Ps.: no dia em queimaram bebês, peixe-espada, meteoro, roupas de índio, moça sem nariz, múmia e sarcófago, eu chorei também a perda da minha história.
5 Comments
Gostei de como vc trabalhou um acontecimento recente a partir de uma questão pessoal da narradora – o passado no presente, mas um passado que é apagado não só pelo tempo mas porque não se dá importância a ele.
Um passeio ao museu como rito de passagem. A consciência da morte, das doenças, dos mistérios e medos. Lindo. Incluindo-se o link com o rito de passagem político, o fascismo logo ali, após o museu arder em chamas.
Gostei muito Vaneska, um texto original e sarcástico sobre um tema tabu.
Nossa, excelente texto. Preciso, afiado e cortante! E também uma bela e dolorida homenagem aos mortos: infância e museu.
Adorei o início e o final ( P.S.) das suas reminiscências. Texto arguto, verdadeiro.. Você mexeu, de forma concisa em vários temas ao mesmo tempo. Evocativo e bonito, Vaneska! Sim, ” Malditos os que erguem crianças e lhes roubam a paz.”