Conhecer o Pão de Açúcar, disse minha filha quando perguntei o que desejaria fazer na semana de férias que passava comigo. Minha mulher detestou. Argumentei, Seria perfeito. Sair bem cedo, desfrutar o ar livre, a temperatura amena do inverno e a cidade vazia de turistas. Fomos.
Na subida contentei-me em espiar a cidade, em especial, as montanhas. Era relaxante vê-las ondular feito cobertores verdes e macios a conter o avanço do mar e do progresso, assegurando uma certa preservação à cidade, pelo menos no trecho onde eu olhava.
No interior do bondinho, como previsto, havia poucas pessoas. Um grupo pequeno de turistas japoneses, em tudo iguais para mim. Rostos, sorrisos e exclamações. E um casal. A mulher, pequena e mal vestida, mantinha as mãos e a testa junto ao vidro de forma a aproveitar a viagem com todos os sentidos. O homem dizia algo puxando-lhe o braço, como se quisesse ser ouvido pelos olhos dela. No terceiro puxão o braço foi recolhido com veemência. Veio o soco, rápido, no rosto.
Os japoneses nem notaram, embevecidos que estavam com o paraíso diante dos olhos. Minha mulher olhava para fora. Minha filha corria. De modo que fui o único a testemunhar a cena. A única pessoa a quem a mulher, olhos de medo, pediu socorro. Eu virei o rosto. Não me envolveria com aquele tipo de gente, não estragaria o dia de minha filha. Felizmente, a mulher se afastou. O homem, um nanico magricelas, me encarou para logo se retirar.
Chegamos no ponto mais alto. O tal homem foi o primeiro a sair do bondinho, escondendo-se de uma retaliação que, imaginava, pudesse acontecer. Minha filha não parava quieta, eu me cansava e minha mulher nos assistia com ar de desprezo. Deixei a criança correr para longe e fiquei no mirante a contemplar os barcos que salpicavam a superfície lisa da baía de Guanabara.
Ao erguer a cabeça reparei que os fios de aço que sustentavam o bondinho formavam linhas paralelas como partituras de música. Elas sugeriam o som da felicidade e da proteção. Minha vida, pensei, e agarrei com firmeza as barras de ferro que nos protegiam do abismo.
Seguro, inclinei o corpo para frente. Queria examinar o paredão de pedra até o fundo. Buscava algo, nem sabia o quê. Algo firme, mais que a rocha. Algo escondido nos obscuros vãos das montanhas. Um sussurro veio lá de baixo, Despencar, cair entre musgos e pedras.
Ante estranho desatino, dei um passo para trás e olhei em volta. Minha mulher, onde. Nos vimos. Ela suspendeu os óculos de sol, conferiu meu estado, lábios trêmulos, pálpebras a piscarem frenéticas, e escapou, fugiu de mim.
Fiquei só, as pernas a bambearem, no ouvido um zumbido e o abismo ali próximo. Senti que caía, me entregava, quando fui amparado. Era a mulher do soco. Ao notá-la, retirei rapidamente minhas mãos das suas. Ela, firme, a voz calma, me disse, Apesar de não sentir pena do senhor, não poderia deixar que caísse, se cuide.
Sozinho novamente, contemplo a cidade. Vejo a beleza sobre a feiura, a paisagem deslumbrante sobre o caos. Vejo minha vida, uma miragem, e a mim mesmo, uma bolha de angústia. Por vezes olho os outros, gente de quem mantenho distância. Hoje não pude fugir. Hoje um estranho me habitou.
4 Comments
Você sempre trazendo um soco que nos surpreende no meio da leitura fluída! Uma pausa que choca e faz refletir.
Lindo conto, Eliana. Mostra a beleza de fora e as angústias da vida. Beijos.
Narrativa envolvente, fluida, visual; também entrei no bondinho com você, ora me extasiando com o mar, as montanhas, ora me assustando com a estranheza da vida e das pessoas que ora se afastam, ora se aproximam, ora nos repelem, ora nos ajudam. . Bonito.
Sinto-me sempre muito envolvida por seus textos, com temas e palavras tão bem conectados. O dilema do personagem entre a individualidade e a empatia é muito atual e a atitude da mulher nos mostra como temos a aprender com uma sabedoria que é feminina. Como há uma força aí que precisamos aprender a reconhecer.