Uma irmã observa a outra fazendo yoga na minúscula varanda do apartamento em que vivem. A irmã inventa de fazer justamente a posição invertida, com a cabeça apoiada no chão, o tronco e os pés pra cima. Ao sair da posição, a irmã em vez de virar pra dentro do apartamento vira pra fora e começa a cair. De início, ela parece tentar se segurar em algum lugar, mas depois começa a flutuar, olhando para o chão, como que contemplando a vertigem ou, como a outra pensa, a própria morte. A irmã que observa grita da varanda: “irmã, irmã, eu te amo, eu te amo”. A irmã que cai desperta de sua queda e se agarra à varanda do segundo andar. Ninguém aparece para ajudá-la a se equilibrar e transpor a mureta. As duas irmãs se reencontram no hall da escada, junto com uma vizinha que também caiu da varanda e também conseguiu se salvar sem a ajuda de ninguém. Ela estava bem e tinha acabado de fazer compras. A vizinha mora sozinha.
As duas irmãs também moram sozinhas, o que quer dizer que elas moram uma com a outra sem a presença de um homem. As duas não são muito de conversar e, quando conversam, é como se fizessem parte de um livro de aprendizagem de idiomas: onde foram, o que compraram, quem encontraram, o que comeram. Não costumam conversar com a vizinha, mas a ocasião de haver duas mulheres caindo das janelas convidou uma troca de palavras. A vizinha disse: “Eu estava tentando ler, mas só conseguia pensar na persiana esgarçada. Fui olhar mais de perto e tropecei. Enquanto caía, meu pensamento continuava o mesmo: a persiana esgarçada. Fui então comprar uma cortina de tecido. Nem sempre que se cai, se chega ao chão”. A irmã que caiu falou, pronunciando devagar cada sílaba: “nós des-pen-ca-mos”. A outra irmã fez, como raramente fazia, uma pergunta abstrata: “o que você pensava ao cair?”. “Nos dentes do cavalo. Eu olhei os dentes do cavalo”.
Certa vez as irmãs hospedaram um estrangeiro. Ele chegou não falando uma palavra, mas, ouvindo a conversa das irmãs — onde, o quê, quando, como (sempre objetivo), por quê (evitado a todo custo) — no trabalho, não parei um minuto, fui ontem ao dentista, voltei de ônibus, por que não me esperou, silêncio — ele rapidamente se familiarizou com a língua, com as vozes muito parecidas da irmãs, com a varanda pequena, ora de janelas bem abertas pela irmã observadora, ora quase fechadas pela irmã iogue. Fosse por seu ritmo pausado de falar, fosse por sua predileção pelo desconhecido, a irmã que viria a cair atraiu o estrangeiro. Um abismo chama outro abismo.
De volta à conversa, a outra irmã insiste, como raramente fazia, na pergunta: “dentes de cavalo?”. “Se nos soltarmos, quem sabe pra onde iremos?”. A vizinha acrescenta, como se ainda estivesse caindo: “A persiana esgarçada. Sem a ajuda de ninguém”. A outra irmã pensa que, quando gritou, a irmã que caía teve, sim, a sua ajuda. Elas não estavam sós.
9 Comments
Saudade dos seus textos, Carolina! Que manejo das palavras! Você brinca com elas, dá nó, desata, conta a história, conta piadas ágeis que temos que pegar no ar (registro para a “solidão” que é só a ausência de um homem rs) Achei incrível.
Oi, Vanessa, essa definição de “solidão/sozinhas” sempre me incomodou, fiquei feliz de poder colocá-la me um texto.
A gente cai, levanta, recomeça, segue em frente;sai para comprar um tecido, um vidro para a janela, uma aparelho para os dentes de cavalo, troca conversa de “aprendizagem de idiomas” com a avizinha sobre o tempo en o vento, se apaixona por um nacional, às vezes por um estrangeiro. A gente vai levando, fazendo iogas de Cirque de Soleil. Levanta a poeira e dá a volta por cima, tal e qual a vida requer. Sem precisar de auxílio de venenos nem de goiabeiras (desculpem, não resisti).Inusitada tua história. Super interessante!
Obrigada, Julia! Adorei a leitura bem-humorada e conectada com o nosso contexto social!
Caí, caí, caí junto com essas mulheres e cheguei ao mundo de Carolina. Poesia em forma de prosa e queda pra cima e pra dentro. Uma coincidência, o abismo também passou por meu escrito.
Estou impressionada com as coincidências entre os nossos textos: abismos, quedas, estranhos e estrangeiros, modos de fugir, solidão e solidariedade. Incrível, parecem duas faces de uma mesma moeda!
Pois é. Procuro escrever meus contos sem ler os já postados. Prefiro me deixar levar pela narrativa que invento. Essas coincidências são sincronicidades dos nossos inconscientes vagando por aí.
Já o modo de escrever são bem diferentes. Quem dera eu tivesse sua veia poética. Seu texto é lindo, lindo, lindo.
Intrigante seu texto. Fiquei ali nos devaneios do cair como forma de despertar! Ou de olhar para dentro de si, mergulhar dentro da própria alma. A solidão que acomete muitas vezes o ser mulher, por tantas razões. Muitas coisas flutuando para fora da minha varanda!
Oi Monica, obrigada por “mergulhar” na minha onda 🙂