
Como em todas as manhãs dos meus mil últimos dias, acordei na cela iluminada por uma lâmpada de luz fria e trêmula. Como em todas as manhãs, meu corpo suava e eu respirava com dificuldade. Acordava em completo alheamento. Não sabia se fazia sol ou chuva, se o céu estava azul ou carregado de nuvens, se algum pássaro voava no alto ou se um cão corria à procura do dono lá onde o chão, coberto por um capim rasteiro, seria perfeito para os cães correrem.
No banco de concreto da saleta sem janelas e de paredes cor de chumbo, eu passava horas a perscrutar os cantos, a falar sozinha e a murmurar uma súplica. Que eu resista. Que eu resista à loucura. Que eu resista ao desespero. Depois, voltava para a cama.
Dormir era um alívio. Despertar, um pesadelo replicado mil vezes.
Ontem, na hora do banho de sol no pátio, dei com um montículo de carvão mal enterrado embaixo de uma das guaritas. Um guarda, a tremer de frio à noite, fez uma fogueira com os gravetos caídos da única árvore existente no lugar. Ela fica junto à janela do diretor e se sobressai, verde e viçosa, em meio ao branco acinzentado dos muros.
O diretor, que temia pela saúde da planta e via como um milagre ela sobreviver áquele deserto de fim do mundo, ordenava, Reguem, reguem, não economizem água. Fora isso, ele considerava o clima da região, calor insuportável de dia e ar congelante à noite, como perfeito para as condenadas. Ficam mais lerdas, comentava com os guardas, enquanto nos olhava enviesado.
Para não bancar a esperta no quadro de lerdeza geral, me aproximei da fogueira apagada como quem não quer nada. Encontrei uma pedra, sentei, separei um graveto queimado e comecei a rabiscar o chão. Sem tirar os olhos do desenho pegava outro e mais outro até encher os bolsos do uniforme.
Ao ficar sozinha na cela tratei de escondê-los em um esconderijo deixado pela prisioneira anterior. Ela cavou, não sei como, uma fenda estreita entre a parede e a cama de concreto e fez uma tampa de cimento com encaixe tão perfeito, que passava despercebida nas revistas.
Trancada a porta, peguei um pedacinho de carvão e parei em frente à parede de minha cama a estudar ângulos, retas e curvas. Primeiro desenhei um quadrado. Depois surgiram flores, folhas e pássaros. Nas laterais acrescentei duas abas em perspectiva.
Pela manhã, ao abrir os olhos, dei com a janela aberta à minha frente. Na cela, um cheiro de perfume se espalhava. Levantei e respirei fundo. Pela primeira vez viveria ali da maneira que desejava, nem que fosse por alguns minutos.
Fui até a janela e vi outras paisagens. Diante delas faria exercícios, sexo, leituras, planos. Falaria com outras pessoas por sobre o batente e comigo mesma quando o vidro estivesse fechado. Escolheria.
Por enquanto queria sentir o perfume e a brisa. Pálpebras semicerradas, braços cruzados sob a cabeça, pulei a janela.
Fugi por anos. Voltei ao dar com o passar da hora. Pulei da cama, peguei uma camiseta e bati com força na parede até as linhas virarem um pó fino e preto no chão. Apaguei tudo. Plantas, flores, pássaros e janela. Não lamentei. Sabia que elas voltariam.
Agora, quando falava sozinha, pedia, Que faça frio. Que faça frio à noite para o guarda. Para mim, quero banhos de sol.
9 Comments
Oi, minha irmã.
A vida é o maior bem que o ser humano tem direito, a liberdade é a segunda maior.
Quando se perde a liberdade, o que resta é sobreviver pensando e deixando a imaginação fluir.
É por meio da imaginação que se pode fugir dessa condição que é imposta ao corpo,.
Quando prisioneiros, a alma está dilacerada.
E imaginar, pensar, a fim de resistir, é o que resta!
Beijos. Eloisa
Que prazer ler o seu texto, Eliana! Sua imaginação é a mais bela forma de resistência.
Excelente! Imaginação poderosa e texto muito bem escrito. Me pegou! Parabéns!!
Mãe, que texto lindo, irretocável. Como uma das suas primeiras leitoras e mais crítica, vejo com muito orgulho sua evolução. Parabéns!!!
Original, surpreendente, a criação da autora (e a do personagem), uma guerreira combativa e tenaz.
Que texto, que imaginação, um tom de esperança, de vida e resistência, numa cela, na solidão. Maravilhiso👏👏👏
minha amiga querida. Seu poema atravessa as grades da prisão e conquista o vento. Como é poderoso o nosso pensamento. Passaro impossivel de aprisionar
A imaginação salva nossas vidas nas mais diversas circunstâncias. Às vezes basta tão pouco para produzir um universo inteiro!
UAU! Que intenso esse texto! Fazendo essa leitura aqui diante da minha janela, fiquei quase sem ar, completamente transportada para a cela que você materializou no texto. Lembrei muito de Van Gogh que no auge de suas crises não tinha janelas e pintava de memória o que tinha vivenciado algum dia. Quantas celas, quantas solitárias, quantos quartos de asilos e hospícios, quantos cômodos em que a falta de uma janela, sufoca, aprisiona, enlouquece! Primorosa a tua narrativa. Saí da minha zona de conforto e voltei mas consciente de meus pequenos privilégios, minhas felicidades, minhas janelas.