
Éramos sempre as duas, lado a lado. Nas brincadeiras, nas conversas, no pátio da escola, na volta para casa. Trocávamos blusas, meias, sutiãs. O que é meu é seu, dizíamos às gargalhadas. Os anos passaram, foram-se os risos, as trocas, as conversas. Nos perdemos. A vida chamou. Criar meninos toma tempo. Criar meninos dos outros mais ainda. E os nossos se perdendo. Se logo, de morte morrida. Se logo depois, de morte matada. Daí a dor que não cessa e acende revolta. Revolta é perigosa. Se espalha. Melhor a loucura. Louco se guarda.
A vida se nos perdeu. Tereza, sumida no mundo e eu, aqui trancada.
Tereza reaparece. Chega em carta sem remetente. Palavras difíceis, conselhos complicados. Por onde andou, parece que aprendeu. Da vida ganhou mais que sofrimento. Nas linhas, Tereza diferente,
Gosto de palavras. Elas pesam. Podem destruir, erguer trincheiras e também salvar.
Tenho pensado no mar, o mar envolve e agasalha, já a vida, arrasta e destrói.
A carta de Tereza continha também um plano de fuga. Minha fuga,
Primeiro, há de se ter estratégia. Evite medo ou inquietação. Esses são sentimentos permitidos a qualquer ser humano, não a loucos nascidos de rebeldia contida, como você. Seja fria e reticente e, principalmente, mostre-se calma, muito calma, diante de tolos e cruéis. Assim, um dia sairá e pela porta da frente.
Uma vez livre, pegue um ônibus e vá à rodoviária. Procure, no guarda-volumes, o armário de número vinte e seis, dia do meu aniversário. A chave para abri-lo está na carta. Dentro do armário estão as economias que guardei por anos de trabalho no exterior. Elas são suas. Compre uma casinha para você.
Para mim, é o fim da linha. Quero descansar. No mar. Já você, sempre sonhadora, viva um pouco. Há vestígios de felicidade em cantos de jardins para quem gosta de flores e passarinhos. Comigo se dá diferente.
Li em um livro que a vida é um conto escrito por um bobo. Nela não há sentido. Há apenas som e fúria. Eu, querida amiga, uma boba, escreverei o final da minha história. Lembre-se, dia vinte e seis, dia do meu aniversário, e rasgue a carta.
Não rasguei. Escondi embaixo do travesseiro. E tanto dobrei e desdobrei, que nela se fixaram nódoas de gordura das mãos e pedaços de memória.
Um dia acordei com um enfermeiro a meu lado. Ele lia a carta. Quis saber da chave. Não contei. O brutamontes amarrou meus braços nas grades da cama, injetou-me um sedativo e pôs-se a revirar o quarto. Durante a busca fez picadinho da carta de Tereza.
Ao voltar a mim, implorei ao médico que encontrasse a chave. A resposta veio em doses maiores de tranquilizantes. Dormi por horas. Acordei tonta, cansada e distante da liberdade. Algumas lembranças se apagaram, outras voltaram, umas poucas permaneceram vivas, como o dia do aniversário de minha amiga Tereza, treze de maio. Nunca esqueci. No momento, procuro me manter calma, muito calma. Da fúria, quase nada restou. É desse quase, que vivo.
6 Comments
Eliana e seus textos vertiginosos. Fico tonta com tanta fluidez e sentidos sendo derramados nesse asfalto quente que é a vida dos seus personagens. Sempre impactante! Sempre intensa e cheia de fúria por justiça!
Obrigada pelas palavras, Mônica.
Mas, olha, se conhecesse pessoas como as personagens, acho que a fúria delas seria por vingança. Justiça tornou-se uma ficção para a maioria dessas pessoas.
Texto forte, cortante, insporado em Faulkner Eliana?
Embora admire e reverencie Faulkner, a fala da personagem Tereza foi baseada nessa passagem de Shakespeare, em Macbeth:
“A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado”.
O título “O som e a fúria” do livro de Faulkner provavelmente vem daí.
Que história poderosa, texto denso, cheio de história dentro da hist´ria. Creio ser um conto sobre mulheres que ousaram ser livres, mesmo que a bendita liberdade só chegue no livrar-se da vida ou da sanidade, ou quase.
Vaneska
Mortes, prisão, loucura. Novas formas de escravidão e dominação? A liberdade das duas mulheres parece estar na fúria, mas acho que essa não é uma história de finais felizes, e a fúria se torna apenas uma forma de sobrevivência. Mas apenas “quase”.