Minha primeira casa não é a minha primeira casa. Dizem que casa é muito importante para quem é de câncer. Eu sou de câncer. Já tive muitas casas, algumas no centro do Oeste, outra no Sul, no Norte e agora no Sudeste. Os lugares não escolhi, acredito que foi o destino. Mas será que não fui eu? As casas eu escolhi, com exceção da que eu nasci. Mas será que não fui eu? A coisa mais importante numa casa são as janelas. Quero sempre casa com janela. É bom estar dentro, mas é bom saber que há algo lá fora. Nem que seja um muro, ou outra janela. O filme diz não há lugar como nosso lar. Mas será que não fui eu? Já tive casa de mãe na praia, mas nunca tive casa de avó. Minha casa já foi um quarto subterrâneo de hotel, um quarto na floresta, um quarto numa vila. Será que tem casa que não é casa? Será que tem não-casa que é casa?
Aquela pessoa que te recebe com o sol no peito.
Aquela pessoa que te desperta o sol no peito.
Sol, calor, fogo, lareira, lar. Tudo que tem calor é casa. Calor: um anagrama de coral de colar de carol — o nome que escolheram pra mim. Mas será que não fui eu? Das muitas casas que tive, algumas foram imaginárias. Aquela com piscina e pastor alemão. Aquela com palmeiras e varanda. Aquela com paredes e almofadas coloridas. Não é de surpreender que o meu brinquedo favorito tenha sido – adivinhe – uma casa de bonecas. Uma casa de madeira dois andares telhado em V porta vermelha com móveis de madeira pra combinar sala cozinha e quarto. Trazida da feira de BH em uma visita à irmã. Não tive casa de vó mas tive casa de irmã em BH. Mais de uma até, a primeira com uma cortina de penduricalhos de madeira pra separar o corredor. A outra no décimo sétimo andar de um prédio no alto de um morro. O melhor era sem dúvida a janela pro belo horizonte de prédios prédios prédios. Não é de surpreender que eu sonhe sempre – adivinhe – com uma casa.
A primeira casa.
A casa originária.
A casa com cobogós, painel de vidro trincado, paredes marrons, azulejos azuis, mesa quadrada vermelha, retrato de Cristo e de santos, telefone de girar, varanda cortina de renda, piano, discos, livros, samambaia, canarinhos, pai, mãe, irmão, irmãs, prima, sobrinhos, pintinho da feira, pato do zoológico, a casa que habitei todos os quartos, a casa no meu inconsciente, a casa que quero ter, a casa que não quero mais ter, a casa que quero não quero ser, a casa que vendi por tantos mil dinheiros pra comprar a minha primeira casa que não é a minha primeira casa.
4 Comments
Através daa suas palavras fiz um passeio pela sua casa de paredes marrons. De repente lembrei da casa da minha avó que era uma espécie de mundo mágico com penteadeira com três espelhos enfeitada por porta-joias, vitrola na sala, grandes janelas, fogão azul de abas e quintal com mangueira. Não foi minha primeira casa, mas foi.
A gente sempre quer ter casa, até que não quer mais ter. A casa que abriga e aconchega é a mesma que te fixa e enraíza. A uma vizinhança, a uma vida, a problemas específicos. A gente quer ter casa. Todas serão a primeira casa. Todas serão mundos distintos. Até mesmo a casa que quero não quero ser. Que delicadeza e que talento, Carolina!
Maria Júlia
Lindas as casas da tua realidade e da tua ampla imaginação, Carolina, como´parece fácil mas não é, descrever nossos habitats com coisas, pessoas, dimensões , lembranças. Você faz isso de modo bem seu, bem original.
As casas de Carolina, quem será que escolheu onde e como? O destino? A dúvida persiste mesmo sobre a casa onde ela chegou bebezinha. “Mas será que não fui eu?”. E viajamos entre objetos, lugares e pessoas à dimensão do sonho e da poesia. Me espraio e paro aqui “A coisa mais importante numa casa são as janelas… É bom estar dentro, mas é bom saber que há algo lá fora”. Ali permaneço, a boca aberta e os olhos cheios de lágrimas.