Ela própria não gostava de se arrumar. Deixava reflexos prateados para trás quando passava em frente ao espelho, presença outrora amiga. Agora ele jazia esquecido na parede da sala. Não se queixava, nem da aparência ou de qualquer outra coisa. Só sorria um sorriso triste por se sentir constrangida. Nessas ocasiões forçava ainda mais naturalidade para não transparecer representar.
Tinha nome de flor, Rosa. Era casada, sem filhos e gostava de comprar anjos de porcelana, que podiam ser vistos enfileirados no aparador da sala de jantar. Nos dias de semana, lá pelas quatro da tarde, se sentava perto da janela para contemplar a rua e também sua coleção de anjinhos. Nessas horas pensava vagamente em Deus, admitindo a possibilidade de ter sido esquecida por ele. Se conformava ao sentir-se satisfeita com a discreta felicidade que conquistou.
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Coincidencia escolhemos o mesmo nome para as nossas ora patéticas , ora trágicas protagonistas. Gostei muito. O detalhe do espelho "presença outrora amiga, ele agora reinava sozinho na parede da sala", adorei. Deveria ser tudo ao contrario, o ser humano envelhecer procurando romper a rotina sempre, colecionando novas experiencias, novos sentidos.
Nossos sonhos não morrem, mesmo quando desistimos deles…continuam lá…escondidos. Rosa tenta se satisfazer com outras coisas, mas é um autoengano. Buscar a felicidade e a realização através da ordem e móveis novos pode dar uma sensação de preenchimento do vazio que insiste em nos habitar. Somos todos como a Rosa.
Silvia Sobral Vallim
"Perfeita ordem, perfeita desordem.Criteriosa arrumação das compras no armário… Sorria um sorriso triste para não transparecer representar… mas conformada, se sentia satisfeita com a discreta ordem que conquistou… lhe dava prazer a ordem revelada nos pequenos detalhes…só o pensamento vagava perdido, ora debatendo entre o certo e o errado….
A guerra dos opostos, a ordem e a desordem… o certo e o errado… Eu como sempre mergulhando nas profundas águas de Rosa, no belo e profundo texto de Eliana. o que falar depois desse testemunho de alma escancarada?
Assim como a Júlia, precisei ler e reler para para apreender o que não estava dado na superfície da história contada. O autoengano que evita espelhos, que simula interesse genuíno, que se dissimula num apreço pela ordem. Sim, um conto bem contado, cheio de ricas sutilezas.
Vaneska
Autoengano disfarçado na ordem, nas coisas que a rodeiam. Ótimo conto.
Sutil autoengano este seu, ou melhor, da Rosa. Você tem essa qualidade nos seus textos, as coisas não são totalmente claras, evidentes, sempre há um mistério, um desconforto nos seus personagens que nem a ordem caseira, nem os anjos podem apaziguar. O seu autoengano nos é mostrado por frases, como
-…Só sorria um sorriso triste ao se sentir constrangida, procurando, nessas ocasiões, agir com naturalidade para não transparecer representar.
-… que existia um segredo escondido nas coisas.
Acho interessante esta sutileza da narrativa, é preciso lê-la mais de uma vez. Eu, pela parte que me toca nesta Roda, já me acho muito pouco sutil, sempre conto e soletro tudo… gostaria de poder ser mais misteriosa. No entanto, tal como a Rosa, e muitas de nós, também sonhei com escadarias, vestidos longos e salão para dançar. Daquele filmes enganosos de Hollywood. Parabéns Eliana!
M. Júlia
Visitei a cada através de suas palavras. E os suspiros escondendo segredos no ar…