Tudo havia acontecido muito rápido. Sofia mal conseguia lembrar. Foi durante os dias nublados do inverno de cinco anos atrás, em que ela, de férias, costumava passar horas andando contra o vento, descalça, a areia macia da praia sob os pés. Não percebia, mas um homem a olhava como um gato olha um passarinho. Guloso e paciente.
O homem se chamava Ivan e já havia dias que ficava ali sentado, observando ao longe aquela criatura em seu habitat natural. Todos os dias ele vinha na hora do almoço na esperança de lhe falar, maquinando estratégias que pareciam infalíveis. Naquele dia desistiu mais uma vez e levantou-se para voltar ao trabalho, mas antes parou numa banca de jornal para comprar uma revista e ao sair esbarrou sem querer na mulher. Surpreso com o presente do acaso, inventou uma desculpa qualquer para abordá-la, Desculpa, machucou?, Não, não. Não foi nada., Ahn. Poderia dizer onde fica a farmácia?, Sim, fica nessa direção. Vou passar em frente.
E acabaram seguindo juntos, conversando sobre banalidades. Um convite aceito para um café à tarde e dali em diante passaram a se ver com regularidade. Casaram-se.
Daquele encontro se estabeleceu uma alquimia improvável. Sofia, nos seus vinte poucos anos, era uma jovem corpulenta de carnes bem distribuídas, que gostava de usar roupas leves e transparentes. Trabalhava em uma livraria, mas poderia ser em qualquer outro lugar. Por sua vez, Ivan era um homem de negócios, magro, alto e de pele branco-acinzentada curtida em escritórios. Era comedido nas palavras e nos sentimentos, encontrando-se sempre bem vestido, da cabeça aos pés.
Sim, Sofia não temeu o desafio de compartilhar a vida com alguém tão diferente. No início, os dias foram de prazer intenso em macios lençóis de seda. Seu esposo e amante a tocava com a delicadeza e a firmeza de mãos experientes sobre seu corpo desinibido. Um pouco depois, ela, que não temia nada, nem calor, frio, vento ou pancadas da vida, passou a temer a perda daquela segunda pele, quente e acolhedora. Com aquele homem amoroso e cuidadoso sentia-se protegia das dores do mundo e da solidão, deixando-se envolver por suas preocupações constantes: Iria se resfriar, Podia se machucar.
Não, Ivan não a obrigou a nada. Amava como o colecionador ama a borboleta, guardava-a. Ela cedia, sentindo por ele um amor canino, não prestando atenção na infelicidade que surgia vagarosamente em pequenos gestos diários.
Foi numa situação cotidiana para o casal, ida a um coquetel no trabalho de Ivan, que Sofia, um pouco cansada, encostou a cabeça na janela para sentir a chuva que caía sobre a vidraça. Ficou ali por um tempo, como no limbo, entre o ambiente confortável e aquecido da festa e o mundo friorento de pessoas apressadas lá fora. Num movimento repentino, parecendo lembra-se de algo, voltou-se para a sala à procura do marido. Viu que ele estava junto de um grupo e, naquele exato momento passava a mão no cabelo impecavelmente penteado, levemente grisalho, e ajeitava a gravata. Tudo elegante e natural. Aquela visão fez Sofia estremecer e desviar o olhar para a janela, onde permaneceu até a hora de ir embora.
Voltaram para casa em silêncio. Sofia chegou a mover os lábios para dizer algo, mas segurou-se, deixando novamente pender a cabeça, agora sobre o vidro gelado do veículo que os levava. Uma lágrima escorreu em seu rosto maquiado. Subitamente, pediu para Ivan abrir a porta. Ele protestou, Você enlouqueceu? Está chovendo, é noite e faz frio,. Ela gritou, Para, para. Abre, por favor.
Sofia saiu de seu refúgio e nos primeiros passos procurou andar devagar e com cuidado, parecendo pisar em brasas. Aos poucos foi sendo invadida por uma sensação de urgência que a fez tirar os sapatos e sentir a dureza e o frio do chão. Mas caminhava tão leve, que seus pés descalços mal sentiam os pequenos detritos deixados pela chuva e sua pele, em vez do frio de julho, experimentava a delicadeza da brisa que varria o ar.
Assim, seguiu desassombrada, parando somente para olhar a lua que teimava em surgir entre nuvens pesadas. Ia até arriscar uns passos de dança, mas parou em frente a uma porta espelhada e notou que sobre seu corpo havia uma pele fina, transparente e de pouco viço. Com muita paciência começou a arrancá-la, percebendo que por baixo havia outra, macia e brilhante. Puxou tudo. Contemplou-se novamente. Gostou do que viu e seguiu pela rua em passos largos e decididos.
E dançou.
6 Comments
Que bela iniciativa compartilhar conosco contos tão bonitoa e inspiradores!
Que bela iniciativa compartilhar conosco contos tão bonitos e inspiradores!
Que belo texto!
No prazer de conhece-la recentemente, nos contou do desafio neste período da vida, escrever. Narrando o PELE, despertou a minha curiosidde de conhecer suas escritas. Parabéns! Vá em frente!
Que belo texto!
No prazer de conhece-la recentemente, nos contou do desafio neste período da vida, escrever. Narrando o PELE, despertou a minha curiosidde de conhecer suas escritas. Parabéns! Vá em frente!
Corrigindo esse corretor desobediente *fascinante *transmutou
Minha querida amiga. Não poderia ser mais faacinante essa prévia de nosso reencontro. Você é o presente daquele futuro que sonhavamos nos idos século XX.2o grau que transmutiu em ensino médio e que na verdade virou ensino minimo. Mas você virou borboleta.