“Unir palavra e corpo é o mais profundo desafio de quem busca coerência na vida.”
(Frei Beto)
Adélia acordou aos 40. Sem faca, sem queijo e sem fome. Leu, anotado no caderno de rabiscos, o aforismo cretino: “os primeiros quarenta anos de vida dão-nos o texto, os trinta seguintes, o comentário.” Seu texto não estava completo, longe disso. Faltavam palavras, faltava unir palavras e corpo. Pintou as unhas com a palavra vermelho.
Adélia acordou aos 42. Estava pronta para a festa, mas com a impressão de que a celebração estava no final. Não era justo. Se vendo em Hilda, o tempo a estancar jorros de vida, apelou socorro ao vinho. Pintou as unhas da mesma palavra.
Adélia acordou aos 43. Descendo degraus. Agarrada a corrimões. Sentindo-se corroída. Temendo a invisibilidade que os prazos impõem ao que é superfície. O tempo a secar o desejo e suas antigas batalhas, ao lado de Cecília. Pintou as unhas com a palavra nu.
Adélia acordou aos 44. Encarou no espelho o mapa que sua pele estampa. Corrigiu os percursos. Dispôs folhas em branco pra todas as suas novas palavras, deu-lhes corpo. Abriu as comportas.
Adélia acordou aos 45. Se viu bonita pra festa. Era clara e visível como um dia de sol. Arrependeu-se de contar os dias. O tempo, deus maldoso que se julga dono de tudo, só é deus de quem se ajoelha. Seu tempo é ser. Acordou meio Alice, desejando que tudo seja leve, tão leve que o tempo nunca leve. Nunca mais palavrou as unhas.
*Citações não literais de Adélia Prado, Hilda Hilst, Cecília Meirelles e Alice Ruiz.
*Citação literal de Arthur Schopenhauer
4 Comments
Metáforas sobre a passagem do tempo para uma mulher de quarenta. Medo e redenção. Poesia.
O tempo, o passar do tempo, o deus maldoso do tempo que corre sem parar, que não nos deixa perceber a sua passagem, que a cada ano nos faz mais velha, mais perto do fim, mais “sem faca, sem, queijo, sem fome… sem volta… a cada ano a impressão de que a celebração está se aproximando do final, de que estamos “descendo degraus, agarradas em corrimões”…
… o tempo a secar nossas antigas batalhas… encarando o espelho, corrigindo percursos… ficando com medo da invisibilidade, da mudança… arrependendo-se ou não… desejando que tudo seja apenas mais leve…. Palavras …
Vaneska seu texto é inspirador, a impressão que tenho é que a cada dia, dependendo de como se acorde, dependendo de como nos sentimos, esse seu texto pode ser entendido de uma forma…. Hoje entendi ele como um caminhar para uma morte, talvez uma morte simbólica, um fim de um relacionamento, de uma amizade, de um trabalho, de uma etapa da vida… hoje acordei sentindo seu texto assim…
Que instigante poesia proseada! As tintas do tempo pintaram meus olhos!
Vaneska, fiquei meio desconcertada com teu texto, reli-o duas vezes; inusitado, ousado, original, você estará mudando de estilo, se repaginando? Você remexeu com a palavra, pintou-a, cortou-a, desnudou-a, ” corrigiu os percursos”, e se abriu para novos vocábulos, com a faca e o queijo . E com fome. Está ousando. Parabéns!
M. Júlia