
Hoje matei meu pai. Três tiros. Na cara. Ele viu a arma apontada e berrou, Guarda essa mer…Não terminou. O primeiro tiro foi naquela boca suja dele. Agora está lá, mortinho da silva. Não peço perdão. Não me arrependo. Não, me arrependo sim. Ter demorado tanto. Se conto o que fiz, faço com uma certeza, nasci para esse dia.
Precisei de cinquenta minutos para sair, matar e voltar. Fui de carro. Estacionei em uma rua próxima à casa de Felipa, uma das mulheres de meu pai. Hoje, quarta, é o dia que ela sai, lá pelas duas da tarde, para comprar pão. Sua única exigência. Tomar café da tarde com meu pai como se fossem uma família. Café com leite e pão com manteiga. Diz que é lembrança boa da infância ruim. Ele aceitou, não resistiu ao dengo. Eu ri quando soube. Se não fosse esse capricho bobo, não teria a chance de matá-lo.
Esperei cinco minutos Felipa aparecer. Ela aguardaria por dez ou quinze minutos o pão quente sair do forno. Tempo para um sorvete de morango. Ela o lamberia como uma gata a beber leite no pires, atraindo os olhares gulosos dos minguados fregueses da padaria e do segurança que a acompanhava. Ele aproveitava aquela oportunidade para relaxar e admirar livremente o fruto proibido que tanto desejava. A mim, interessava que aquela comédia ordinária se prolongasse o máximo possível.
Como previsto, assim que a mulher de meu pai chegou, dei partida no carro e parei ao lado de uma árvore distante um quarteirão da casa. O restante do percurso foi feito a pé. Eu usava bigode falso, óculos escuros e boné. Era um homem qualquer em uma rua qualquer. A ação começava e eu só pensava em acabar o serviço, não me importando com o que acontecesse comigo.
No caminho, sol escaldante a torrar os miolos, fui tomado por uma fúria, que nem desconfiava existir em mim. Embora a última noite tivesse sido de insônia banhada em suor e terror, pensei tratar-se de febre dos nervos. Nunca havia matado alguém antes. Imaginava que seria conduzido pela razão e pelo dever de seguir os desígnios do destino. De repente, estava ali, a minutos de assassinar meu pai, sem o refúgio de nobres sentimentos e uma irresistível sede de vingança a me consumir. Não por mim, nem pela mãe que me gerou, Cibele, mas por meus irmãos mais velhos. Eles foram levados à ruína e morte por Saturnino, nosso pai, o Senhor do Morro do Olimpo.
Não tive dificuldade de entrar no prédio. O portão foi preparado por mim, na noite anterior, para que não se fechasse de todo. Saturnino, como sempre, pedira ao segurança que acompanhasse Felipa à padaria. Ele se sentia intocável e, como toda a gente, se convencia de que a morte era acontecimento exclusivo aos outros. Sua inconsequência era admirável, considerando o poder que possuía. E providencial, para quem, como eu, desejava fazê-lo encarar o inevitável encontro que, cedo ou tarde, nos reservava a vida.
Uma vez dentro do prédio, subi de três em três degraus as escadas. Ao chegar ao segundo andar, o suor escorria e a cabeça latejava. Parei para respirar. Por um segundo senti que desistiria. Um vento forte e frio, vindo dos fundos do corredor, bateu uma porta e o barulho me pôs em marcha novamente. Fiz o que tinha que fazer e saí rápido. Vim direto para a favela de Creta, onde fica minha verdadeira casa. A sua casa, mãe.
Quis lhe contar o que se passou para que não se preocupasse ou sentisse medo por mim. A mulher que me deu a luz e me entregou a você, desgraçadamente, também me deu uma sombra, a minha história. História que herdei como quem herda um fardo do qual, desde muito cedo, descobri que precisava me livrar. Hoje, cumpri o destino que minha mãe de sangue traçou para mim. Destruir meu pai e salvar seus filhos, meus irmãos, aqueles que restaram. Não fui obrigado. Sabia que precisava fazê-lo.
E agora, meu filho, o que fará? Vai fugir?
Ninféia, você é a mais sábia e bondosa das criaturas. Me criou e educou para que eu me tornasse um homem de coragem e fibra. Não fugirei. Planejei a morte de meu pai com minúcias, por anos. Para ele, e seus comandados, eu era o filho amoroso e triste que procurava compensar o tempo perdido, servindo-lhe incondicionalmente. Não, não vou fugir. Não será preciso. Sou o herdeiro de um império. Aceitarei minha herança.
Seja como for, eu sempre o apoiarei, Maicon Júpiter. E venha logo para dentro de casa. Parece que vem tempestade.
Um vento forte soprou sobre eles e varreu os telhados dos casebres, que se sucediam como ondas na superfície de barro. No ar empoeirado, pontos de luz começavam a tremular. O dia findava. Amanhã haveria outro. Depois outro e além, outro mais. E assim, até o fim dos tempos. Para deuses e homens.
8 Comments
Eliana, este texto na verdade, é o final de um romance, você terminou antes de começar. Aguardamos ansiosamente o começo e o meio.
Abraço, Elaine
A narrativa pretendida foi criar o chamado conto contemporâneo, um flash ou um recorte de uma história. No meu entender, o número limitado de personagens e a simplificação do conflito não permitiriam tratá-lo como romance. No futuro, quem sabe, poderia levá-lo a um desenvolvimento maior. Obrigada pelo incentivo.
O nome Maicon Júpiter já vale o conto. O texto é forte. A história, contada de forma direta, repleta de referências. É também uma história de resistência. O pai – supostamente intocável – morre fácil. Não há poder absoluto.
Seus títulos são sempre incríveis, Eliana!
Assim como as antigas histórias da mitologia sobre os deuses, aqui também me impressiona como essa é uma história tão humana: relações familiares, vingança, superar – ou livrar-se – do passado. Tudo isso com pequenos grandes detalhes de descrição “De repente, estava ali, a minutos de assassinar meu pai, sem o refúgio de nobres sentimentos” e a fala tão bonita e tão típica de uma boa mãe: “Seja como for, eu sempre o apoiarei, Maicon Júpiter. E venha logo para dentro de casa. Parece que vem tempestade.”
Tenso. Uma cena de filme. Aquelas sequências de desfecho de história que fazem a gente suar de aflição e ficar na dúvida moral do que é certo ou errado.
Instigante am crônica desta morte anunciada-.um Édipo às avessas- que vinga Ninféia, a mãe aquariana- linda flor aquática de Monet. Enquanto enquanto a peste invade Corinto e o nosso cotidiano. Lê-se como um policial, me lembra Rubens Fonseca e também “Ö estrangeiro” de Camus pela frieza e distanciamento do relator, na primeira pessoa.. Parabéns!
Sim. Você percebeu bem, Júlia. Há algumas referências a Camus no texto. A primeira frase, “Hoje matei meu pai”, saiu da abertura de “O estrangeiro”, “Hoje mamãe morreu, ou talvez ontem, não sei”.
Já o enredo do conto, foi sim baseado na mitologia greco-romana, a história de Júpiter, que tentei transportar para a atualidade.
Muito legal voltar aos antigos mitos e deixar os tipos e arquétipos emergirem. Sim, a abertura de “O estrangeiro” é impactante. Não for por acaso que ” o absurdo” de Camus gerou aquele desassossego geral. Eu era fissurada nele ( Camus). Super texto! Ilustração engenhosa!