
Oi, Pai!
Sei que você preferiria uma carta. Daquelas escritas à máquina que fazia uma música de fábrica da revolução industrial. Você guardava uma no sótão lá de casa, lembra? Eu cheguei a rascunhar versos uma ou duas vezes, mas nunca me entendi bem com aqueles botões que catapultavam meus dedos. Lembra que a tecla da letra A deu defeito? Minhas declarações de amor viravam TEMO.
No atropelo dos tempos modernos, estou eu aqui nesse aplicativo de mensagem falando com você sobre memórias. E que o meio não tire a profundidade do fim.
Você e mamis passaram bem a semana? Estamos bem por aqui e não estamos precisando de nada, pai (antes que você pergunte todo preocupado). Seguimos em isolamento e seguros.
Quero mesmo é falar sobre saudade. Uma saudade que me ocupou o coração esses últimos dias. Lembrei daquele mar de massambaba, da cor dos seus olhos, pai. Você que desbravou aquele lugar, construindo uma casa em meio a um areal, quando só havia uma pequena vila de pescadores esquecida entre o mar azul profundo e a lagoa verde-esmeralda rodeados pela restinga intacta. Você sempre foi um desbravador, não é? Sempre te achei forte e destemido. Já te disse isso? É, hoje quero falar de suas virtudes. Nossas discordâncias já ficaram no passado, não é, pai?
Essa semana meu irmão me mandou uma foto lá da nossa praia (essa junto à mensagem). Quase chorei de saudade de um tempo em que você enfrentava aquela estrada de terra indomada para nos levar para aquele paraíso! Lembra, pai, quando você nos levou em noite de lua cheia pra pescar siri? Você nos preparou uma moqueca às 11h da noite!! Que noite linda na praia! Você ensinou que aquele rastro azul luminoso na areia branca eram as carcaças dos tatuís que deram suas vidas à arrebentação das ondas. Era uma aurora boreal debaixo dos nossos pés! Nunca esqueci aquela visão.
Saudade dos seus olhos azuis se apertando no sorriso das suas rugas de sol e de praia, pai! Quem me dera ser criança de novo para correr descalça, brincar com os filhos dos pescadores e ser feliz daquele jeito simples.
Só queria dizer que nos dias mais difíceis, eu visito essas memórias incríveis que você fez possível com sua coragem. Obrigada por ter me dado de presente essa ilha de paz e sossego que mora dentro de mim.
Manda um beijo para mamis. Amo vocês!
PS: lembra da velha máquina de escrever? A tecla A não funcionava. Hoje eu posso escrever sem medo quando antes era TEMO.
2 Comments
Detalhes do físico, dos gestos, das passagens de vida de um pai em face à lembrança de sua menina. Emoção em ler esse relato saído da memória que lhe constitui e fortalece. Emoção também por me permitir voltar aos momentos com meu pai.
Linda ode a teu pai e à máquina de escrever. Nóia também tínhamos uma antiga, alemã, grande, pesada, amarelada! Também íamos a uma praia lá longe, com todos os a apetrechos de praia, barraca, esteiras, sanduíches. Não se falava em farofeiros!
Gostei dos ” olhos azuis se apertando no sorriso das suas rugas:”
A poesia, sempre presente na tua prosa!