Apenas passo os olhos pelos jornais; jogo-os fora, alegremente, porque eles pretendem dar-me notícia de muitos problemas, e eu não tenho nem quero problema nenhum.Acordei um pouco tarde, abri todas as janelas para o sábado louro e azul, e o mar me deu bom-dia. Passa um pequeno barco branco no mar de safira: como vai ligeiro, como vai contente, com seu bigodinho de espumas brilhantes! Uma ave se detém um instante peneirando, depois mergulha na vertical em grande estilo; quando volta, um pequeno peixe brilha em seu bico. A BOA MANHÃ RUBEM BRAGA
O mar sempre me intriga. Desde que meu pai me resgatou das suas ondas nervosas e cinzentas, nunca mais me atrevi a enfrentá-lo. Entro na água sempre cheia de dedos, quero dizer, na ponta dos pés. Porém, o fascínio persiste. Inveja de Ulysses, das sereias, de Sinbad, dos piratas! Eu, a clandestina de um navio da Companhia das Índias, atrás de cravo e canela no Oriente para vendê-las no porto de Amsterdã… E, nos descobrimentos, a emoção de desembarcar e dar de cara com os tapuias, os primeiros habitantes do Brasil. Home is the sailor. O peixinho que vejo brilhando no bico da gaivota me traz de volta ao sábado; daqui a pouco tenho que sair e comprar um robalo fresquinho, regá-lo a quilos de sal grosso, muito limão, ligar o forno e esperar o pessoal. Não, não conheço ninguém, simplesmente uma nova ideia a de criar um grupo de almoço. Para garantir almas homogêneas, fiz o recrutamento em um blog de tradutores piscitarianistas e eis que surgiram cinco, de várias idades, etnias, uma boa diversidade de gente e de pratos. Só que não consigo me livrar dessa janela! O mar safira me transporta ao velho projeto de driblar a fobia marítima, velejar pela baía, sair a esmo por aí. No entanto, sei que isso não vai acontecer; muito mais viável será pegar um trem para algum lugar desconhecido, esquecer a situação do país, esquecer… Espera aí, não será esta viagem para dentro de mim um convite ao desencanto? Lembram-se do personagem de um famoso escritor suíço que saiu de Berna num trem noturno para Lisboa, em busca de algo ou alguém? Deu até um filme! A sim, a Suiça! Montanhas mágicas, lagos verdes incrustrados em aldeias primorosas, chalés aconchegantes, madeira de lei, neve luzindo ao sol, crianças, as estações seguindo seu ritmo, obedientes, uma após a outra. Um desses lugares onde a natureza fala melhor e mais alto do que os humanos que se calam atônitos, perplexos. Efeito de A Grande Beleza. Não, não quero voltar, para que voltar a lugares que já foram vitrines do lado mágico da vida? Repetição não dá certo, nem com lugares, nem com amores, pelo contrário, fica até sem graça, sem sal. Sem sal? Ah, meu Deus, e a minha receita de peixe para o almoço?! A bela manhã repleta de sonhos gentilmente me desperta de recordações e devaneios caleidoscópicos, me forçando a viver rituais corriqueiros. Creio que lá longe, o barquinho já atracou numa das ilhas Carragas e a ave partiu em busca de uma nova iguaria. Vida que passa! Como a tão bonita e boa manhã de primavera.
5 Comments
Queria eu atravessar o Atlântico e estar entre seus comensais. Não como tradutora, mas como uma das “almas homogêneas” dos “devaneios caleidoscópicos”. Ainda bem que a literatura nos transporta no tempo e no espaço. Enquanto lia seu texto, Júlia, enchi a boca com as expressões deliciosas que criou e com o robalo fresquinho assado com muito sal grosso. Dele peguei um pouquinho para jogar aqui em nosso canto abissal.
Adorei o texto, narrativo e poético ao mesmo tempo!
Você pode não viajar de barco, mas nos leva no texto a uma bela viagem!
Júlia você escreve divinamente.
Elaine dear
Dank je wel!