Me chamo Madeinchina, está escrito no meu fundo, mas todo mundo me chama de berço. A Ana e o Cláudio me compraram há alguns anos, pouco antes do Joaquim nascer. Ele chegou cabeludo, ficou careca e agora tem cachinhos como um anjo. Nós nos completamos. Eu relaxo e fico mais macia para ele dormir melhor. Quando ele acorda, enrijeço e balanço um pouco de um lado para outro para ajudá-lo no aprendizado dos movimentos. Me lembro de me curvar e levantar levemente seu quadril para que ele conseguisse colocar o dedão do pé na boca. Aparentemente, provar as extremidades do corpo é bem importante para humanos e eles se deleitam nos curtos anos em que aprendem que são limitados no espaço, mas ainda não sabem que são limitados no tempo. A Ana e o Cláudio se revezavam: enquanto um ninava o Joaquim, o outro dormia. Um dia eles chegaram juntos de manhã. Joaquim acordou, olhou para um e para o outro, arregalou os olhos e ficou minutos olhando um e outro, ameaçou chorar e começou a rir. Deve ser bom descobrir que pai e mãe são dois e diferentes.
Depois de alguns meses agitados, tudo ficou calmo. Joaquim se acostumou a passar as noites só comigo, chora pouco, come em horários certos, fica em pé em mim e tenta fugir. Tudo estava calmo, até o início da onda de desaparecimentos. A primeira baixa foi a cômoda das fraldas. Sumiu. Deixou um vazio no canto do quarto onde a Ana e o Cláudio colocaram uma mesa plástica para o Joaquim desenhar. Ninguém pareceu ficar preocupado com o evento criminoso e sabe-se lá onde a cômoda está agora. Passados alguns dias, foi o quadrinho de palhaço. Está bem que era um tanto aterrorizante aquele riso forçado pintado de vermelho. A gente se apega até às coisas feias. O pior é a sensação de que o mal está chegando perto, a cômoda era do outro lado do quarto, o palhaço já ficava aqui ao lado. Tenho passado as noites acordada, vigiando Joaquim. Na loja, todos diziam para que eu ficasse atenta às mudanças no ambiente e prestar muita atenção caso alguém dissesse a palavra cama. Será que o palhaço está bem?
Levaram o móbile, aquele que ficava em cima de mim. Com rodas e estrelas. Com ele, Joaquim aprendeu que as coisas, quando ficam entre a luz e a parede, fazem sombra. Ele balançava os braços, pedindo para ir atrás da parede procurar as outras estrelas, ver se elas estavam lá. O móbile onde morava o astronauta da história que o Cláudio contava. Vão levar tudo. Ontem, não sei se sonhei, mas acho que ouvi a Ana dizer cama. Eu devia ter imaginado que nossa paz não ia durar para sempre. Está cada vez mais difícil relaxar à noite. Joaquim acorda cada vez mais cedo e logo levanta. Falta pouco para ele aprender a me escalar.
O Cláudio e a Ana passaram o dia em casa hoje. Carregaram caixas, arrumaram todo o armário. Cláudio martelou alguma coisa. Tenho quase certeza que alguém disse cama. Ana, não leva o boneco. Não acredito que é você que está pegando as coisas. Você está bem? Depressão pós-parto não pode ser. Você sempre foi tão carinhosa. Mudar assim? Deve ser algum outro distúrbio, desses que atacam pessoas adultas. Bem que notei que engordou. Não está vendo que o Joaquim está chorando? Para com isso. Não leva o boneco.
Cláudio, que bom que chegou. A Ana enlouqueceu. Levou a cômoda, o palhaço. Vai ver ela tacou fogo em tudo. Cláudio, deixa minhas grades. O Joaquim já anda tentando fugir. Espera. Para. Para onde você está me levando? Eu sabia que tinha ouvido cama. É meu fim. Vou fazer minhas rezas e esperar a morte em algum depósito empoeirado. Vocês são uns ingratos. Joaquim continua chorando. Ah, não. Não me coloca aqui no quarto do depósito. É nesse quarto que os objetos são velados, antes de serem dados, destruídos, vendidos, não sei. Está diferente o quarto. Cláudio, você também sabe de tudo. Por isso me trouxe aqui. Olha! O palhaço e a cômoda. Pintaram a cômoda de amarelo.
— Está sentindo, Joaquim? Disse Ana, colocando a mão do menino em sua barriga, está sentindo sua irmã chutar?
8 Comments
Muito bonita a transição, as transformações da vida acompanhadas por um observador tão privilegiado. A cômoda foi pintada de amarelo. Fiquei curiosa sobre a cor do berço. Será que mudou? E ele, será que aprovou? 😉
Também fiquei na dúvida rsrsrsrs.
Fazer rir e chorar, tudo ao mesmo tempo e agora. Penso que somente um berço, animado de poesia, seria capaz de tal proeza. Narrativa tão leve que me refrescou. Obrigada!
Fiquei feliz demais com o comentário. Obrigada.
Fazer rir é arte difícil e assaz necessária. Ainda mais nos novos tempos. Embarcar em um escrito que oferece brandura, diversão e pitadas de suspense é caso de muito agradecer.
Algo mais leve por influência sua.
Muito original e viva a história deste berço, com personagens que vêm e vão, se mexem, remexem, objetos e pessoas se confundem no relato, entremeado de pensamentos imteressantes:
…. provar as extremidades do corpo é bem importante para humanos…. aprendem que são limitados no espaço, mas ainda não sabem que são limitados no tempo”.
Gostei muitoi!
Muito obrigada. Fico feliz.