A janela mágica retangular dá para morros, ilhas, o dedo de Deus, o mar. O mar que vem de lá para cá trazendo ondas nervosas, crespas, azuis, onde circulam barcos, garças altiva e famintas, transatlânticos de luxo. O A ilha Fiscal, palco melancólico da última valsa do império tropical. O mar onde habitam Ulysses e as sereia que arrastam a menina com eles. Em terra firme, à direita da janela,o elegante hotel art decco, alojamento de reis e rainhas. Um cenário de encher os olhos, azucrinar a imaginação, atiçar a cabeça, remoer a mente da jovem. Ela só tem 11 anos e tudo é possível.
Final de agosto de um ano do século passado, mudança de comboio no país basco, fronteira da Espanha com a França. Agosto abrasador, muito nervosismo e tensão no ar. Meio a uma pequena multidão, ela arrasta sua mala de uma plataforma e outra. É a primeira vez que viaja por tanto tempo, mais longo do que poderia imaginar, rumo à grande aventura. Esfogueada e nervosa, entra num compartimento onde homens ocupam todos os assentos. Ora, não contava com isso! Não tem lugar reservado, nem nada, falta-lhe traquejo turístico. Assustada, abre outra porta, que bom, ainda encontra um lugarzinho no canto. Aqui também só tem homens, que, com grande curiosidade, a vêem entrar, afinal, ela está totalmente fora do contexto. São trabalhadores sazonais de aspecto rude, cheirando a suor e tabaco, conversando na língua incompreensível da região. Gentilmente, vendo sua confusão, um lhe oferece um “bocadillo”, um sanduíche meio amassado, de aspecto duvidoso. Intimidada, ela agradece, mas prefere não aceitar. São demais os perigos desta vida. Histórias antigas de mocinhas dopadas por vilões mafiosos de repente passam pela sua cabeça. O trem marcha tranquilamente por uma paisagem nebulosa e indefinida, em direção ao roteiro delineado a partir daquela janela azul e verde. Ela só tem 23 anos e tudo ainda é possível.
4 Comments
Vez ou outra, Julia, surge para nós, seus leitores, essa menina curiosa e desbravadora de mundos. Ela passa por cima de medos, dúvidas, e vai em frente. Fica sempre uma vontade de se saber mais.
Duas janelas distintas e recheadas de sentimentos tão diferentes. Como pequenos filmes onde cabem os sentimentos de uma década.
Fiquei curiosa para espiar as janelas das décadas seguintes!
Debrucei na tua janela e vi exatamente o que você descreveu, colorido pela delicada simplicidade do olhar, que somente uma janela propicia. Depois vaguei com a moça-menina em busca de um assento, de uma proteção, ciente do ambiente inóspito, mas decidida e curiosa pra viver a vida! O que são as palavras? Talvez partes de um trilho que é a vida!
Fico contente que tenham viajado comigo em 2 das muitas janelas da minha vida.