
Janaína estava indo embora de vez. No aeroporto, a fila para passar pelo raio-X era dolorosamente grande. As curvas eram como um labirinto em que se sabe o caminho e nunca se chega a lugar algum. A distância poderia ser menor, eram as circunstâncias que exigiam tantas voltas. Sentia-se tonta, queria andar mais devagar e a pessoa atrás de si insistia em se aproximar. Por um momento, desesperou-se pensando que havia esquecido o passaporte e estava quase saindo da fila quando o sentiu no bolso do casaco. É só agir como uma pessoa normal, pensou. O que é uma pessoa normal? Alguém que não tem medo. Quem não tem medo? Observou uma mulher alguns metros à frente. Estava de salto alto, calça justíssima e uma blusa de oncinha com um decote generoso. Como alguém consegue viajar com sapatos e roupas desconfortáveis, que vão atrapalhá-la de se salvar em caso de emergência? Janaína olhou pro seu tênis nike, a calça larga, a blusa de algodão. De que tudo aquilo adiantaria? A despedida, essa parecia que era pra vida toda.
A vida toda é uma expressão que só envolve o que virá, não o que já foi. Janaína estava indo embora de vez e era como se estivesse esquecendo algo: os calmantes, o lenço de sua mãe que lhe trazia segurança, havia deixado a casa arrumada? Havia, mas a casa já não era mais a sua casa. As baias com o raio-x estão cada vez mais perto e Janaína se move como um animal, só porque todos assim o fazem. É o que uma pessoa normal faria. Janaína pensa nos campos de concentração e pensa na loucura de estar se sentindo desse jeito quando tudo que ali acontecia era fruto de sua decisão. Não estava sendo subjugada pelo mal de um mundo fascista. Quando, na cozinha, havia derrubado sem querer a manteigueira de louça que se quebrara e o choro irrompera e as cobranças deram vazão, ainda não sabia que ali era o início do fim. Um fim que, como a luz da manhã entra pelas frestas da cortina, seria o início de algo novo. Tudo parecia incerto: ser aprovada no raio-x, o embarque, a partida, o voo, o começo em um país estrangeiro. Nesse momento, não havia certeza de nada. Juntara os cacos da manteigueira porque era o que devia ser feito assim como decidira largar seu companheiro, sua casa, seu país. Era o que devia ser feito. Era mesmo? Não tinha certeza de nada. Já embarcada no avião, a recomendação “em uma emergência, deixe toda a bagagem para sair da aeronave” serviu-lhe como uma confirmação das decisões tomadas. Não havia recado que fosse tão direto: não era mais possível carregar tanto peso. Janaína olhou ao redor e procurou a saída mais próxima de onde estava e a gravação respondeu “ela pode estar atrás de você” como se lesse seus pensamentos. Janaína respirou normalmente. A decolagem fora autorizada.
4 Comments
Algo novo, viajar é preciso, velhos sentimentos nos acompanham, as malas que levamos, a bagagem que trazemos ao longo da vida, o receio de que o raio X detecte segredos que nem sabíamos ter, objetos estranhos, alheios, que nem conhecemos. Será que vão me isolar, interrogar, prender, ,e impedir de viajar? Resquícios do inconsciente, um poiuco de querer ficar, não desejar partir, largar, se aventurar poe outros lares, outros mares, outros lugares? Text instigante, Carolina!
A personagem, na fila do aeroporto, está preste a passar pelo raio-X. Raio-X que invade e assusta por revelar o que normalmente fica escondido. As pistas surgem no fluxo de pensamento. O medo de não parecer normal, o incômodo por ser empurrada à frente, a sensação do labirinto, onde “nunca se chega a lugar algum”, um novo país, uma nova vida. A personagem vive um momento de passagem. Está preste a entrar em uma etapa onde será a única responsável por suas escolhas. Como “tudo que ali acontecia era fruto de sua decisão”, o Raio-x poderia revelar tanto o medo de mudar como o receio de desistir. Com alívio recebe a autorização para voar: E caso o pior acontecesse, existiriam saídas, como também a possibilidade de deixar “toda a bagagem para sair da aeronave”.
Viagem difícil essa, quando o sentimento berra por uma vida mais leve e a leveza deixa os pensamentos tão pesados! Há momentos que precisamos simplesmente ir. Há viagens sem passagem de volta. A vida é uma delas.
É…existem viagens e viagens. Algumas viagens com roteiro planejado, dicas de amigos daqui, ou mesmo de lá. Viagens pra encontros, re-encontros, festas, trabalhos ou somente para rodopiar em outras terras. Mas tem as viagens sem roteiros, que não se resolvem por papas ou guias. São as viagens das vidas. Vida que vivíamos aqui, vida que sonhamos acolá, ou ainda vida que nos sobra depois que algo se quebra. E Janaína viajou pra essa vida, com medo, mas corajosamente decidida. Muito linda essa narrativa.