Nenhuma cama é grande quando se dorme com um elefante. Encolhida no que lhe resta do leito, tenta não se concentrar na respiração de tromba. Queria móveis novos para o quarto quase vazio. Tudo foi destruído aos poucos. Os criados-mudos verdes, a pequena cadeira vermelha, as portas do armário branco. Todos vencidos diante das manobras brutas. Ainda resta o tapete, cinza. Espera que uma hora sirva de tropeço e provoque um acidente fatal.
Não dorme. Ele se mexe e a empurra com sua pata de elefante. Direto no rim esquerdo. Não imagina lugar melhor para a pancada, o hematoma pode ficar escondido debaixo da roupa. Ainda precisa dar desculpas. Odeia dar desculpas. As pessoas não têm ideia do que é dormir com um elefante.
A eterna espera pelo próximo ataque noturno de fúria. Dores de dente de elefante. Lembra os dezessete dias na UTI, o crânio afundado. O tubo na garganta. A viagem de opióides e benzodiazepínicos. O quarto branco e as pessoas, quase todas brancas, de branco. Os apitos dos monitores. Os rangidos de macas saindo com cadáveres. A vontade de ser um deles. Tenta impedir o próximo ataque com analgésicos e Rivotril escondido no uísque.
Não dorme. Nem na morte espera dormir. Sente seu corpo se aproximar. A pele áspera tentando carícias. A respiração ainda mais potente em sua nuca. O hálito azedo. Que adormeça, que adormeça, pede como quem faz uma prece. Que mantenha longe o seu pênis de elefante. O mesmo que a trouxe para essa cama em tempos mais amenos.
Sem qualquer aviso, levanta em busca de algo. Gavetas reviradas, água jorrando de torneira. Pisadas sólidas. Chiado de portas. Algo que cai na cozinha. Os sons a devolvem a um completo estado de alerta e angústia. Pupilas dilatadas. Seu corpo é remexido na cama quando ele volta a deitar ao seu lado. Não demora, vem o ronco de elefante.
Se ao menos ainda houvesse um abajur. Pudesse ler. Acender um cigarro no escuro. Ouvir música de olhos fechados. Não fosse tão pesado. Pudesse matá-lo. Ainda existisse desejo. Tivessem dois quartos. Pudesse partir. Não parte. A zona de desconforto também pode ser viciante, aquela ainda é a sua cama. Fica, fica sempre.
* Femme couchee, Picasso, 1932.
4 Comments
Extremamente assustador. Uso o proibido advérbio para expressar o efeito da narrativa que nos esmaga como um rolo compressor de angústia e desconforto. Só conhecendo as profundezas do humano, no caso, uma mulher, e a arte da escrevinhação para atingir esse grau de impacto em nossas entranhas.
Nossa, como é duro conviver com um elefante e sentir seu hálito azedo. Imediatam me ocorrem duas associações:
1) com um antigo, visto recentemente no youtube, ´o tragicômico filme francês: ” un éléphant-ça trompe énormément( um elefante, isso engana demais). Trompe quer dizer engana(v. tromper) e também tromba. Ótimo. Haja visto uma tromba não embala mais a protagonista. Pois é, les choses de la vie.
2)em holandês,” ter pele de elefante” significa não ter sensibilidade, ser grosso por natureza, com certeza.
Já imaginou, um pênis que já não serve com um homem de sensibilidade elefantina?
Vaneska você está ficando ancada vez mais e mais sofisticada mesmo sem advérbios e conjunções!
“Os rangidos de macas saindo com cadáveres. A vontade de ser um deles.”
Texto que soca a boca do estômago! Assim como esses “elefantes” que vemos todos os dias saírem impunes nas notícias dos jornais.
Senti o peso e a secura nas frases sem floreios. Parabéns! Belo uso do exercício sugerido!