Ela era afirmativa, alegre, independente, tinha um coque loiro, roupas elegantes, saltos altos. Chegava lá em casa, trazendo vida e energia para a nossa sala, deixando todos felizes, conversando animadamente. Devia ter uns quarenta anos e se mudara para o Rio, à procura de trabalho e de nova vida. Costumava aparecer uma ou duas vezes por semana, lá pelo final da tarde, depois das reuniões da sociedade teosófica. Munida de sotaque sulista, pausado, claro, ela ia relatando os acontecimentos do seu dia mas sempre fazendo questão de ouvir as nossas histórias. Era admiradora de filosofia hindu, e particularmente, de Krishnamurti, o famoso místico indiano que ressaltava a necessidade de uma revolução na psique de cada pessoa. O humano nunca se dá conta das próprias imperfeições mas não hesita em apontar as dos outros. Com ela, era o humano isso, o humano aquilo. Por que ela não fala simplesmente “os homens”, ou “ as pessoas”, minha mãe perguntava. Deve ser o vocabulário da teosofia, eu respondia, impaciente. O meu irmão e eu começávamos a ler Krishnamurti, e achávamos tudo instigante, mesmo sem atinar para o que era preciso a fim de se atingir o máximo grau da evolução. Recordo que isso me deixava meio aflita e quanto mais livros eu lia, mais imperfeita me sentia. No entanto, tia Lygia e a sua intensa busca pela verdade era banalizada pelos familiares. Lygia mora na teosofia! Dizia-lhe um tio parodiando o clássico samba. Não tem filhos para se ocupar, comentavam outros.
De noite, no seu aconchegante apartamento ao lado da praia, ela recebia telefonemas de gente necessitando de ajuda, conforto, palavras amigas, ouvido, e passava horas trocando ideias com eles. Levava muito a sério todas as atividades que empreendia. Estudava alemão no Instituto Goethe, ia à praia, gostava de tomar um chope na Atlântica, de certos artistas de cinema e de algumas figuras políticas. Já mais velha, viajou para a Índia, mas na volta parecia meio desapontada. Vinte e tantas horas de voo, tanto calor, miséria e…o que foi feito da transcendência, onde estava a imanência, deu a entender veladamente .
Muito tempo se passou, eu mudei de ares e Krishnamurt veio palestrar na minha cidade. Tinha quase noventa anos de idade, e não me decepcionou: postura ereta, alto, carismático, sagaz, com seu inglês oxfordiano, respondia todas as perguntas em estilo socrático, isto é, com outras indagações, o que deixava a plateia meio no ar. Saí da palestra encantada e …confusa. Carisma é assim, tem esse efeito nos mortais. De certa forma, ela também era carismática com seu entusiasmo e curiosidade pela vida, independência, olhar penetrante, generosidade; A sua mensagem de vida era bem clara e fazia o que dizia. Não conheci ninguém igual, que desse tanta cor a um ambiente.
11 Comments
Adorei conhecer a Tia Lygia. A descrição da personalidade, dos gostos da personagem e de suas características físicas faz a gente desejar conhecê-la e trocar umas palavras sobre os humanos e o Krishnamurt em especial.
Krishnamurt foi também meu guru pelos idos da juventude. Guardo até hoje um livro dele que saiu na coleção Planeta.
Primor de crônica, Júlia.
Teu relato foi tão vivaz, tão pincelado de cores, que permitiu desenhamos Lygia a cada linha, deixando na gente uma vontade danada de tê-la conhecido.
Essas pessoas são mesmo solares, inesquecíveis! Sorte você ter podido experimentar esse encantamento!