
Stupakoff, Otto. Hotel St. Regis. NY, USA, 1972 (modificado com VSCO). Direitos: IMS (https://ims.com.br/exposicao/otto-stupakoff-beleza-e-inquietude/)
Estar de frente a um espelho e não se olhar.
A mulher no banheiro não se olha no espelho. Através do espelho, não há curiosidade. Prefere olhar pra outro lugar – o que vê ali?
O olhar do fotógrafo também não se interessa pela mulher diante do espelho, mas pela mulher diante do desconhecido.
*
Quando eu escuto minha voz, escuto-a como a voz de uma pessoa fofa. Falo coisas fofas. Escrevo coisas fofas. Tiro fotos de mim e dos outros, fofas. Mas o que isso quer dizer? Em mim, sinto que é uma disposição à dilatabilidade no encontro com os outros, me acomodo fácil. Uma graciosidade muito naturalmente não agressiva, que não intimida e muitas vezes agrada. Esse tom arrogante pode, também, ser algo fofo. Mas o fofo não está só no temperamento, está também na materialidade: algo macio ou algo estufado, como um gato – que pode ser fofo em todos os sentidos. Tá vendo? Começo a falar de gatos e começo a ser fofa. É difícil não ser quem se é. Acontece que já fiz maldades terríveis, fui mesquinha e grossa quando eu deveria ter sido, com o perdão da palavra, fofa. É isso, declaro-me: não sou nada fofa e a última coisa que quero ser nesse mundo é fofa.
*
A mulher no banheiro está de costas e, portanto, não vemos sua face. Pode ter qualquer expressão: de alegria ou de tédio, não importa. Sua postura, sim, importa: está na ponta dos pés, com a lombar arqueada. A tensão do corpo condiz com a curiosidade de olhar através da cortina. O que ela vê ali?
*
Há algo de engraçado ao ler a descrição de um livro no sebo virtual e achar que aquilo descreve a você. Nesse outro espelho, leio: usado, capa dura, formato médio, em bom estado, sinais do tempo.
*
Dizem que ter uma memória fotográfica é algo bom e desejável, mas raro de ter. Tenho algo bem mais banal que é a memória construída a partir das fotografias. Para mim, minha mãe sempre foi velha. Já tinha cabelos brancos desde nossas fotos de mãe e bebê. Quando eu era criança, nunca entendi como poderia me parecer com ela. Hoje, ao comparar nossas imagens, reconheço a testa alta e o cabelo curto, o olho esquerdo ligeiramente mais fechado que o direito, as sobrancelhas falhas, o pescoço longo.
*
Só tenho uma lembrança da minha mãe que não vem de uma fotografia. É ela falando ao telefone na sala, com as luzes semiapagadas, sentada na beira do sofá dizendo “que que é isso” e balançando a cabeça.
*
Tudo que eu escrevo é fofo. Inclusive escrever isso.
*
A mulher no banheiro foi instruída a olhar através da cortina. A mulher no banheiro não parece uma mulher no banheiro.
*
Para algumas pessoas, ser fofa é sinônimo de ser fraca. Essas mesmas pessoas acreditam que você é como um tapete felpudo e macio que pode ser pisado, um tapete confiavelmente não escorregadio, que simplesmente está ali – na sala de estar. É natural: crianças em cima de uma cama fofa querem, por instinto, pular em cima dela.
O mesmo acontece na vida real.
*
Uma amiga disse: não se pode ser fofo em Paris. Désolé.
*
De calcinha e sutiã, a mulher no banheiro quer sair do banheiro. Ela não quer ser a mulher no banheiro.
9 Comments
E não é que um texto sobre a fofura pode ser forte e impactante? Será que o que nos chama a atenção no espelho não é aquilo que nos incomoda, o que não queríamos que estivesse lá? Será que o que nos chama a atenção no espelho está, de fato, lá? A Carolina que vejo no outro espelho que são os seus escritos não é fofa. É densa, sarcástica e interessante. Ah, se se for fofa também, pra mim tá ótimo, o mundo já anda duro demais!
Importantes questionamentos, Vaneska. Agradeço o olhar atento e generoso. Um beijo!
Você me leva para lá, para cá, para lá, para lá, para cá…. é assim mesmo que somos, um amontoado de pensamentos, de olhares, de idéias que a primeira vista parecem desconexas, mas que com certeza tem uma ligação, uma relação. Li e reli seu texto algumas vezes e só o que vinha na cabeça é a experiencia da meditação, quando paramos, sentamos e tentando silenciar a mente começamos a observar o ir e o vir incontrolável dos pensamentos. Não adianta tentar controlá-los é assim mesmo, como seu texto, não adianta tentar controlá-lo,… é como um rio caudaloso que correr sem parar. Ufa!
Quem é você? Espelho, espelho meu haverá alguém mais fofa do que eu ? Depois da leitura fiquei me perguntando: não creio ser fofa; serei um livro de capa dura? Best-sellers em geral não são de capa dura. Daí, concluo, nunca serei best-seller. Você cria indagações interessantes a partir da tal foto. Sim, não nos reconhecemos a partir da leitura dos outros. Será fiel a que fazemos de nós mesmas? O autoconhecimento é privilégio de poucos. Antigamente levava anos e anos de divã… Fofo: que adjetivo bobo é este, devia ser usado exclusivamente para crianças abaixo de 7 anos e talvez para ursos e gatos, não sei. Infantiliza muito. Desculpe-me, escrevinhadora, mas você não é fofa!
Oi, Julia, é isso: infantiliza-se muito. Obrigada pelo elogio final! 😉
Se olhar é o exercício mais difícil e o que, na minha experiência, conferiu maiores sentidos à minha existência.
É verdade, Monica, como é difícil. Tenho tentado praticar mais esse exercício com uma maior franqueza.
Espelho ignorado, a mulher olha algo. Mas o que? Ela olha a si e, generosa, nos fornece aquilo que vê, ela mesma. Suas lembranças, divagações, avisos. Avisos para que saibamos que ela nos olha também “Para algumas pessoas, ser fofa é sinônimo de ser fraca. Essas mesmas pessoas acreditam que você é como um tapete felpudo …É natural: crianças em cima de uma cama fofa querem, por instinto, pular em cima dela”.
Oi, Eliana, seu comentário me fez pensar: será que tudo que vemos nos outros e em nós, é o que queremos ver? Como no texto da Angela, será que conseguimos extrapolar nossa percepção?