
Em algum lugar do passado, limpar grãos de paus e pedras passou a ser tarefa de mãos mecânicas eficientes. Não ligo e continuo a catar feijões. Gasto nisso um terço de hora. Se por hábito ou desatenção, não sei dizer. Sei que gosto de afundar os dedos no vazio entre os grãos, fazê-los cair do alto e escarafunchar imperfeições. Hoje encontrei um grão sem viço. Um grão solitário em meio aos outros, pretos e brilhantes, alegres até, prontos a cumprirem o destino de ser feijão.
Enquanto levanto para lavá-los e colocá-los de molho, penso na lista de compras e repasso mentalmente, Feijão, Arroz, Azeitonas, Alho, Árvore.
A boca diz Árvore sem mais nem menos. A árvore veio de um lugar do passado e caiu dentro da praticidade do meu dia. Surgia na moldura de uma janela de onde pendiam, lado a lado, cortinas transparentes a balançarem ao vento.
Afasto a lembrança e pego lápis e caderno para fazer a lista. A árvore retorna, agora em meio a um nevoeiro. Um dia, na infância, uma árvore seca no céu, na contraluz da manhã. Depois percebi, era a fumaça de uma queimada que parecia uma árvore. Duas imagens reais. A árvore que existia onde havia o vazio e o vazio onde não existia árvore.
Guardei para sempre a lembrança. Era como se um ínfimo grão de mistério, delicado e quase invisível, tivesse me encontrado.
Retornei à lista. Comecei devagar, atenta ao arranhar do lápis, ao circular do ‘a’, ao ondular do til. Sentia-me longe das obrigações. Não que não goste de cuidar da casa. Gosto e, mais ainda, do ir e vir contínuo e repetitivo, do vazio cheio de coisas em que mergulho quando estou imersa nos afazeres domésticos.
É um vazio que posso chamar do que quiser, inclusive de Deus. Nele faço uma espécie de reza, pés e mãos a movimentarem-se pela casa, em oração, a afastarem a angústia. O perigo é o não movimento.
Como acontece com os barcos no mar, eu balançava e ondulava. Na lista de compras entrei, da lista de compras saí
Feijão, Arroz, Azeitonas … A linha não escrita espera. A linha não escrita vive da fé. A linha não escrita mora no vazio. A linha escrita pode ser o que quiser.
6 Comments
Que olhar atento para encontrar poesia até numa lista de compras! Mas sim, são esses momentos de epifania, na vida e na literatura, que agem como breves e intensos relâmpagos de compreensão. “A árvore que existia onde havia o vazio e o vazio onde não existia árvore.” – também eu vou guardar esse mistério.
É bem assim, na simplicidade de nossos momentos que o pensamento voa. Feijão escorregando pelos dedos, arvore nascendo no pensamento e sento plantada no papel.
Puro momento de fé! Na vida, na simplicidade da vida, na entrega aos pensamentos e na poesia – essa linda companheira que nos embala.
O perigo é mesmo o não-movimento! A inércia, o conformismo, a entrega covarde. A mesmice total. Você vai do concreto- do feijão à azeoitona.-ao abstrato, depois volta ao concreto.
Interessante essa perspectiva.
Oi Eliana! Voltei a nossa infância quando você fez referência a tua árvore. Lembrei-me daquele esqueleto de árvore queimado imponente a beira do morro e da estrada que ali permaneceu por muitos e muitos anos. E ao fundo e no alto a pedra peão que completava a paisagem produzindo um quadro perfeito de tanta beleza. Apesar de ter sido castigada pelo fogo ali insistia em nós brindar com sua resistência, fazendo parte de nossas vidas!
Parabéns, minha irmã!
Havia esquecido totalmente do esqueleto de árvore, presença constante na paisagem de nossa infância. Embora a história seja inventada, é possível que imagens vindas do inconsciente façam parte de sua construção. Obrigada pelo comentário e pela lembrança.
Deus, o ser dos espaços entre os movimentos. Ou o próprio movimentonem si. Aquele vazio que é preechido, apesar de vazio. A árvore que preenche o vazio do que não está lá.
Amei as irmagens, a narrativa e a reflexão. Narrativa que nos conduz num zigue-zague entre o ser e o existir.