Maria Júlia
com acompanhamento musical
Domingo pródigo de sol e azul celeste. Saio da missa solene na catedral de Barcelona e depois de apreciar a Sadana, uma dança típica da região, saco alguns dinares do caixa automático. Feliz com a alegria da praça e da música, caminho pelo centro com aquele sentimento especial, de descoberta e liberdade, que muitas vezes se apodera dos viajantes.
No final de uma ruazinha cheia de lojas, a visão de uma imensa rosa rubra, linda, na mão de uma cigana, me atrai. Após um ligeiro momento de hesitação: o quê, ciganas aqui na Cataluna? Emigradas da Andalucia, sem dúvida!, para lá me dirijo, surpreendida com mais um presente domingueiro.
– No quieres llevar?
Não, não quero, mas não resisto ao cheiro da flor. É que acabara de ler um estudo identificando os odores em dez categorias diferentes: perfumado, amadeirado, frutado químico, de menta, doce, de pipoca, limão, e dois repulsivos, chamados de acre e apodrecido. Esta devia ser uma colombiana, conhecida pelos fortes odores:
Inalo e respiro fundo. Sinto uma leve tontura. Ao meu lado, uma outra cigana faz uma pergunta banal: de onde eres? De muy lejos, retruco. Deço a ladeirinha e entro num táxi. Quando abro a carteira para pagar, vejo que meus valiosos dinares tinham desaparecido, mas que, generosamente, me deixaram uma notinha dobrada de dez, a quantia suficiente para o trajeto. Como? Em que momento? Eu tinha segurado a alça da bolsa com força, sem abri-la nenhum instante. Ainda desnorteada e sob o impacto do ocorrido, vou à delegacia do bairro fazer a denúncia, quem sabe, consigo obter um reembolso do seguro. Com um sorriso de lado e ares de quem já conhece o enredo, o delegado pede que eu espere lá dentro. Entro no recinto e me sento no longo banco repleto de gringos de várias raças, tamanhos e cores. Constato que todos tinham contemplado uma flor- nem sempre a mesma – e perdido dinheiro. Um casal inglês fora aliviado em mil dinares. Consternação geral. A sala é invadida por ohs, ahs, superlativos absolutos e exclamações indignadas. O delegado entra trazendo inúmeras fotos, mas é difícil identificar as moças. São praticamente idênticas: morenas de cabelos longos, largos sorrisos, flores viçosas na mão. Todas vestidas de cigana. É o truque da moda, assegura-nos o delegado.
Após muita hesitação – tenho horror a acusar terceiros, com ou sem fundamentos – me levanto e aponto para a foto de uma cigana de saia amarela.
– Essa é a flor que não se cheira! Una flor sin olor! – exclamo em portunhol afiado.
– Segura? Indaga delegado. -Si señor! Ele parece satisfeito, mas não consegue balbuciar uma explicação plausível sobre o ocorrido. Saímos juntos da delegacia, com nossas denúncias devidamente registradas e o sumário esclarecimento do delegado – olor muy fuerte y manos muy delicadas, é tudo que diz- comentando sobre a flor rubra e traiçoeira que se alimenta da ingenuidade alheia Tínhamos caído no conto da rosa, um roubo baseado numa tática simples, sutil e banal dado no bando de estrangeiros de olfatos desprevenidos.
Chegando ao hotel, ainda aturdida com as emoções do dia, começo a divagar sobre as traições a que estamos sujeitos quando seguimos a esmo os nossos sentidos, sem permitir que o sexto, talvez o mais importante deles, se pronuncie. Minha cisma vai vão tão longe que no dia seguinte, ao acordar, eu me surpreendo cantarolando o clássico do mestre Cartola: “Queixo-me às rosas, mas que bobagem! As rosas não falam! Elas apenas exalam…” Simples assim.
https://www.youtube.com/watch?v=VofYXCJyeTY
Leave A Reply