
Caminhava há horas sem querer chegar. A cada passo no terreno plano, que se estendia no horizonte sem anteparo à vista, adentrava no passado à procura de referências e direção. Feito miragem ou delírio, elas apareciam, sumiam e reapareciam. Uma casa solitária no meio do nada, um poço de água lamacenta, um vento sem trégua e a ausência completa de gente, a não ser por três habitantes, que se alternavam na memória em manchas de claro-escuro, tal qual um farol ao longe.
Ainda que escapasse, o presente se impunha. Uma barreira de calor fazia tremer fantasmagoricamente o ar e exigia esforço constante do corpo, que, para rompê-la, se inclinava ligeiramente à frente. A mente, entre escapulir e enfrentar, quicava em sucessivos pontos do tempo. Não a formar uma linha reta e a apontar o futuro, mas em desenho de nós contínuos e atados, como uma cobra a engolir o próprio rabo.
Ora a olhar o horizonte, ora o acontecido, ora o por acontecer, eu seguia na paisagem deserta feito assombração a vagar em um mundo que não me pertencia mais. Sapatos imprestáveis para o chão de terra, roupas pretas, eficientes para aeroportos, torturantes ao sol abrasador, e bolsa de mil inutilidades, dentre elas, um celular. O carro, enguiçado por falta de combustível, ficou pelo caminho.
A figura de preto, mangas arregaçadas e pés descalços, não suscitaria nenhuma pena, senão um riso frouxo, se houvesse alguém a espiar – não havia. Espreitavam os olhos sanguíneos de meu pai e de meus dois irmãos, que me avistavam ao longe e aguardavam inquietos em frente ao casebre isolado. Quando eu chegasse. Magra, alta, solitária, ave de agouro, animal invasor. Talvez atirassem.
Um estrondo. Corri enlouquecida até ficar sem fôlego e olhar em volta. Havia relâmpagos e trovões no horizonte. Pensei em retornar e esperar por socorro no carro. Mas, das seis horas que julgava suficientes para o trajeto a pé, havia percorrido, pelo menos, a metade. Seria arriscado esperar por ajuda onde não passava vivalma por dias. Não tinha jeito, acontecesse o que acontecesse, continuaria a andar rumo à brutalidade pestilenta da qual fugi.
Antes, agachei no mato para me aliviar. Me observavam do alto do trigésimo andar os colegas de trabalho. Zombavam da chefe todo-poderosa, masculina e inumana. Gruí de volta e todos sumiram na poeira do redemoinho que passou por mim a varrer o chão. Eles se dissolveram no ar para se juntarem às nuvens que transformavam o céu em uma pedra gigante e pesada.
Se pudesse, também me transportaria às nuvens. Ir a um lugar aonde nunca fui chamada não permitia tais devaneios celestiais. Não que desconsiderasse a ajuda das divindades para atravessar a tormenta. É que a minha fé estava além de mim. Sabia que a ventania me empurraria irremediavelmente em direção ao meu destino. Bastava somente andar, nem que fosse de tombo em tombo.
No caminho, em meio a um monte de areia fina, vi uma carcaça. Branca e lisa, esclarecedora.
A tempestade e as águas chegaram. A estátua de ferro em que me forjei — foi imperioso, para não desmoronar — se movia com vigor e passadas largas, em meio à violência da chuva, em busca da própria destruição. Mas o furor daquela borrasca não era nada. A fúria que sentia contra as três criaturas no meio do deserto, que também foi meu, desenterrava os dias tenebrosos em que precisei ocultar a própria alma para não morrer.
Ao chegar, havia percorrido quilômetros e quilômetros. Se por acaso me atrasei, foi somente em relação a mim mesma. Agora, onde residia o medo, sopra impiedoso o vento, deixando à mostra, na superfície da terra arrasada, uma adaga inquebrantável. Com ela escavei entranhas e descobri que, ao contrário do que pensava, não havia nada de errado comigo. Quem me fez acreditar, já não existe mais.
Corisco (Dicionário Houaiss)
- faísca elétrica da atmosfera, acompanhada ou não de trovão; raio;
- figurado (regionalismo): indivíduo que se faz hóspede sem combinação prévia;
- figurado: desgraça, catástrofe.
6 Comments
O texto nos faz experimentar o incômodo e a revolta da narradora, as palavras são duras – deserto, céu de pedra, chão de terra, ferro. Até a natureza repele a nossa ânsia por compreensão e acomodamento: tormenta, borrasca, a chuva é violenta, o vento é impiedoso. O texto nos desconcerta porque não sabemos o que a narradora está fazendo ali nesse lugar tão inóspito, como um “corisco” na acepção de “indivíduo que se faz hóspede sem combinação prévia” até que chegamos ao último parágrafo, cheio de frases geniais como a Julia disse. Às vezes a gente precisa voltar para recomeçar.
A expressão de “tirar o fôlego” é perfeita! Mas me impressionou como a sucessão de frases fortes materializou a angústia, o rancor e a constatação definitiva de que não havia nada errado, nunca houve! Somente a velha tirania de moldar o outro conforme si mesmo por identificar quando a nossa fé outro está além de n[os mesmos! Texto forte, lindo e inspirador!
“Se por acaso me atrasei, foi somente em relação a mim mesma.” “Não havia nada de errado comigo. Quem me fez acreditar, já não existe mais”.
Frases geniais que fazem pensar. Gosto de assinalá-las. Aliás, todo o texto, cheio de força e dinamismo.
P.S.Conhece a múisica de Sérgio Ricardo em Deus e o diabo na terra do sol?
Te entrega, Corisco…..?
Também fortem e combativa.
Sim, Júlia. Conheço a música. O trecho “Eu não me entrego, não!” e a tomada final do filme do Glauber serviram como inspiração.
Texto de tirar o fôlego! Cheio de profundidade e intensidade. Potência de tempestade, coração de luta!
E como é desafiador o caminho que nos traz a inteireza de ser extamente o que somos e onde podemos chegar a partir desse saber.
Linda transformação e reconexão com o eu. Além de tirar o fôlego – impossível não repetir! -, fica de inspiração para vários momentos da vida em que vozes de tiranos longínquos tentam nos paralisar.