
O gosto irrecuperável dos frutos secos nos invernos da infância, o estalido das cascas quando partíamos aquelas pulsações de madeira, sarcófagos mais que perfeitos arrancados a algum coração de árvore.* Opa, pode parar. Desde quando árvore tem coração? Valha-me! Pois foi isso mesmo que Inês escreveu no grupo de whatsapp da família. Visualizei logo, mas não respondi. O que que era aquilo? Um poema, uma recordação ou, como acabei concluindo, uma afronta, um protesto, uma clara reclamação porque este ano resolvi não comprar castanhas pro Natal? Acontece que resolvi militar contra o desmatamento provocado pelo plantio de castanheiras que abastecem nossas panças gulosas. As maldades ambientais, pra não falar das sociais, andam desenfreadas e resolvi que essa luta era a minha causa. Precisamos nos engajar. Ora, Inês está tristinha porque não recupera mais o gosto das castanhas… Valha-me, arranje também uma causa, Inês! Essa minha irmã sempre foi dramática, parece até atriz de teatro empoeirado: “sarcófagos mais que perfeitos”, valha-me! Eu aqui dando um duro danado pra convencer as pessoas a não comprarem mais castanhas e ela escrevendo bonito, me botando numa saia justa com a família no whatsapp – como se eu precisasse de mais essa treta depois de ter oferecido a todos uma ceia ecologicamente correta, livre de transgênicos e de carne de animais geneticamente modificados, porém, ainda assim, uma ceia saborosamente rica. Missão quase impossível. Dei um duro danado pra conseguir pernil de grão de bico, cujo plantio é de baixo custo e de fácil adaptação! Aqui não teve chester regado a antibiótico, não. E a Inês dando uma de poeta e tirando onda com a minha cara no grupo – “pulsações de madeira”. Valha-me! Por que não escreveu só pra mim? Aí já viu, né? Foi a minha cunhada me defender dizendo que o planeta agradecia e que esse espírito de respeito aos seres vivos ameaçados tinha tudo a ver com o Natal. Foi o puxa-saco do João dizendo que não existe Natal sem castanha e noz, tradições têm que ser respeitadas. Foi o meu sobrinho intelectual dizer que a Inês devia era publicar um livro, perguntou se ela tinha mais poemas pra mostrar. Foi meu pai compartilhando meme de pavê ou pacumê, querendo mesmo é reclamar que não teve pudim de leite condensado porque eu não compro mais nenhum enlatado e muito menos vou fazer leite condensado vegano de amêndoas! Castanhas não. Eu já falei. Não gostou, Inês? Fecha a boca e faz melhor, ecologicamente e saborosamente falando. Tem problema comigo porque sou a filha preferida e mais bem-sucedida? Fala no privado, não vem fazer enxame no grupo da família. Depois de todo esse quiprocó, eu ainda sem responder, Inês vem dizer que era uma simples cantiga de agradecimento, inspirada pela deliciosa ceia que eu ofereci, pois, se houvesse castanha , sua memória do “gosto irrecuperável dos frutos secos nos invernos da infância” não teria sido assim despertada. Valha-me Deus! Saí do grupo. Volto só na Páscoa, quando o almoço for na casa dela. Não sou tão artista quanto a minha irmã, mas já estou preparando o meu poema sobre a pesca predatória de bacalhau nos mares do norte. Vingança é um prato que se come com poesia.
*Poema “Cantiga” de autoria da poeta portuguesa, Inês Lourenço.
8 Comments
Texto Irreverente e atual na forma, no conteúdo e nas entre linhas. Mal entendidos e picuinhas das redes sociais e a dificuldade de poesia nesse mundo de comunicação literal.
Fiquei encantada também (inveja?) com o uso de conjução e advérbios em sequência na mesma frase”porém, ainda assim”. Uma lição. Palavras existem para serem usadas.
Oi, Eliana, meu objetivo era tentar fazer um texto mais oral. O seu comentário me chamou atenção que preciso ainda mais pisar a mão na oralidade, pois esses advérbios em sequência me soaram agora um tanto elaborados… Mas obrigada pelos comentários elogiosos 🙂
Genial Carolina!
Obrigada, Elaine!
Monica e Julia, obrigada pelas mensagens de incentivo. Este texto foi bem complicado de “sair”… Bjs!
Carolina, adorei irreverência com que você trata o poema transformando-o em motivo para um conflito entre irmãs. Também impliquei com o “coração da árvore e o “sarcófago mais que perfeitos”. Gostei do toque final.
Muito bom!!! E atual!! Florbela jamais imaginária que seu poema geraria treta no grupo de whatsapp da família. A poesia é imprevisível em seus efeitos nas pessoas!