
Primeiro sentiu com a ponta da língua. Um incômodo de nada. Lambia e fazia careta cada vez que lembrava de conferir. Abriu a boca para a mulher espiar dentro, apontando com o dedo. Ela soltou um “Não me amola, vai jogar dama na praça” e ele saiu ressentido, “Mulher dos infernos”, “Desalmada”. Voltou indisposto e deitou na cama. Nela ficou tempo suficiente para a mulher se convencer de que não era dengo. Levou para o hospital. De lá, para a cova.
O fato era esse. Uma bola de carne crescia no céu da boca de Juvenal. Cada dia um pouquinho mais, até impossibilitar comer e falar. E todos achavam muito bem feito. Dos parentes aos vizinhos, do verdureiro ao padre, do garoto tímido à mocinha espevitada. Menos o parceiro de jogo, que lamentara a dupla desfeita.
Que se diga dessas pessoas cheias de vingança, elas não imaginavam que o acontecido seria caso de morte. Pelo contrário. Comentavam, “Uns dias de fome e silêncio farão muito bem ao Juvenal”. De qualquer forma, desejar o mal sem razão é sentimento comum a toda gente. E no caso de Juvenal, razão não faltava para ser detestado. Talvez, acrescente-se a seu favor, talvez a sorte tenha lhe faltado. Se morasse em outro lugar, se vivesse de outro modo. Acontece que “se” é coisa de imaginação, não de vida vivida, e a vida de Juvenal passou ligeira. Ele nem notou. Só descobriu vocação no final.
Existem pessoas que vem ao mundo com o dom de vigiar. São excelentes inspetores, fiscais e ladrões. Juvenal não seguiu nenhuma dessas profissões. Trabalhou trinta anos consertando sapatos dentro de uma oficina minúscula e escura e longe dos olhares dos fregueses. Nunca passou a sapateiro. Foi sempre o assistente. Ao se aposentar descobriu uma missão. Ser o guardião dos bons costumes e denunciar os corrompidos. Tinha justificativa pronta, “A vergonha há de corrigi-los”. O jeito bonito de falar – amigos e inimigos concordavam – aprendeu com a leitura parcimoniosa da bíblia e com o devorar de romances de caubói. Colecionar capas com os galãs era um hobby. Ao ir embora da oficina, destruiu o acervo guardado com zelo no armário e encontrou novo passatempo.
O vigário foi um dos primeiros alvos. As visitas às carolas, em ofício de salvação das almas e de reconhecimento de devotamentos, demoravam e ocorriam na ausência de maridos, filhos e empregados. “Muito impróprio isso”, concluiu Juvenal, que também notou a seriedade dos cumprimentos na chegada e a alegria dos abraços na despedida. Apuração concluída, saiu a anunciar aos quatro ventos a ilicitude do padre.
A exposição das honradas senhoras perturbou muito mais os paroquianos do que a possível sem-vergonhice do padre, que advertiu Juvenal na missa de domingo em sermão preparado exclusivamente para ele. Todos concordaram com a reprimenda. Juvenal abaixou a cabeça e sossegou por uns dias. Não muitos. Logo montou diligências para apurar e divulgar outros casos de perdição.
A última a sofrer com o linguarudo foi a Das Dores. Uma vez, ela chegou de moto, agarrada à cintura de um homem. Desceu duas esquinas distantes de casa. Juvenal reparou. Ela pulou do carona, se esgueirou nas sombras, ajeitou o sutiã e a calcinha enfiada, olhou para os lados. “Muito estranho… o marido precisa saber”. E Juvenal contou ao marido e à vizinhança.
Acontece que todos sabiam do sacrifício de Das Dores. Era insultada, espancada e ferida e continuava firme no casamento. Merecia um desconto. Ouviram quando ela apanhou de novo e se desculpou, “Foi só uma vez, só uma carona, benzinho”. Alguns desconfiavam que ela aguentava o brutamontes por medo de morrer. Mas esses não queriam confusão e abandonaram Das Dores à própria sorte. Fingiam respeito. Preocupado mesmo ficou o Juvenal. O bairro inteiro contra ele, o destruidor de lar.
Quando a notícia do caroço na boca se espalhou, a reputação dele já não valia nada. Houve quem afirmasse se tratar de um calo nascido de tanta falação da vida alheia. Houve, principalmente entre as beatas amigas do padre, quem constatasse castigo de Deus. Apenas o velhinho sapateiro, o antigo patrão de Juvenal – um filósofo nunca percebido pelo assistente –, interpretou o ocorrido de maneira peculiar. Ponderou, “Todo moralista é um atormentado. O cancro já havia tomado o pensamento de Juvenal muito antes de chegar à boca.”
3 Comments
Achei o tom do conto bem machadiano! Um retrato de um tipo desagradável acompanhado de crítica social.