
Dormi ontem e despertei noventa anos depois em um terreno cercado de heras. Espiei o dia se transformar em noite, a noite se transformar em dia, outra vez, outra vez e outra vez, com os milhões de olhos que não possuo. Além disso, mantive minha boca inexistente fechada e observei criaturas a berrarem em um silêncio frenético e estouvado. Durante o sono, me cobriram a água, a areia, os musgos e as teias de aranha. Fui golpeada, cortada e removida. A tudo atravessei em um estado de quase total desatenção.
No tempo em que heróis e deuses disputavam o mundo, também estive nos ombros de um homem. Com a cabeça enterrada no peito, ele me carregava do pé ao topo da montanha e se perdia em cálculos sem saber se eu era sua desgraça ou seu consolo.
Um dia não se importou mais. Foi quando caiu a meu lado. Então, seus olhos vítreos refletiram a minha face a contemplar as bolhas que lhes estouravam as carnes. Elas se putrefaziam rápida e metodicamente por falta do gelo sustentador da vida, a alma.
Em um piscar de olhos os ossos viraram pó e se se espalharam como fumaça pelos cantos da terra. Não restando vestígio algum, nem desespero, nem tristeza, nem alegria. Enquanto se dissipavam as últimas partículas do homem, lembrei do contentamento que às vezes lhe surgia nos lábios sedentos de esperança. Acho que foi feliz quando desistiu.
Após o desaparecer dos ossos, assentei-me ao pé do morro por um pequeno intervalo, uns dez mil anos, e dormi novamente. Despertei em um campo imerso em luz e névoa, onde tudo em volta se acomodava no duvidoso. Inclusive um homem e um cavalo, suspensos pela bruma cintilante, a correrem em direção ao horizonte. Deles emanava uma tal harmonia que, se não desistissem, em algum momento alcançariam a eternidade. Eu, curiosa, segui-lhes os rastros com os meus múltiplos não-olhos. De tanto olhar, adormeci.
Como dizia, ontem tirei uma soneca de noventa anos. Acordo hoje com uma menina sentada imóvel sobre mim, pele com pele, crosta com crosta. Durante um tempo maciço e súbito possuíamos um mesmo respirar e o silêncio nos espreitava.
No momento em que as mãos da criança passavam a tatear minhas rugosidades, sabia que nos separaríamos. Logo se levantaria e extenderia os braços acima da cabeça para se espreguiçar. Nos olhos, tranquilidade. Antes de retornar à casa, ela escorregava pela lateral e, de cócoras, fazia um risco em uma parte minha próxima ao chão. E assim aconteceu por anos a fio.
Quando a menina dormiu para nunca mais acordar, um gemido rompeu a fenda escavada obstinadamente por ela. Fosse sussurro do vento, fala de gente ou de assombração, não causaria tanto assombro aos ouvidos feitos de matéria dura, como são os nossos, de pedras, pedrinhas e pedregulhos do lugar.
Dentre os milhares de anos e cenários a mim destinados, esse terreno cercado de hera, onde viveu a matéria outra que de mim fez parte, passou a ser meu solo exclusivo e absoluto. Mesmo que o porvir das infinitas eras o transforme e destrua. Mesmo que nem eu sobreviva a destruição.
5 Comments
“lembrei do contentamento que às vezes lhe surgia nos lábios sedentos de esperança. Acho que foi feliz quando desistiu” Em mim a sensação foi de alívio. Me senti o homem, me senti a menina e ouvi o gemido de forma clara, quase como um animal que se esvai. As figuras adquirem topologias, são quase uma poética em 3d. Incrível essa materialização do poético! Lindo!
Poesia e política em um encontro perfeito entre lindas imagens e o conto de Sísifo. E imagens lindas para descrever uma outra relação com o tempo e o sofrimento dos que não morrem.
Viagem para dentro e ;para fora que nos leva com você. Concreta e poética, como sempre.
Muita poéticas as impressões desse ser tão longevo e atento a tudo que está ao seu redor.
Muito intensas as palavras escolhidas para celebrar essas impressões. Interessante de ler. Quase uma arqueologia literária breve.
Um texto que do subjetivo da autora, trás para o subjetivo de quem lê. Tem erudição e ritmo, quase uma dança pelas muitas existências ali visíveis ou não. 👏👏👏