A sensação de estar num universo incoerente ao qual cheguei tarde demais é assustadora. O mundo pós-pandemia se refaz e procura voltar ao normal.
Volto para casa após dois meses e meio fora, vejo que além de uma pia da cozinha com vazamento, a TV também não funciona. Meu estado atual de indiferença se eleva ao de impotência e surdo desespero. É que a vida é curta e os aborrecimentos do cotidiano consomem grande parte da existência. Ai que prazer não cumprir um dever… Inveja de Robison Crusoé!
Pelo telefone, sim, as visitas caíram em desuso, me fazem rodar em volta da TV, acionar todos os dígitos, botões e cabos, além das demais intimações:
–Desliga o botão banco, do lado esquerdo inferior da TV.
-O botão é preto, tem importância?
-Minha senhora, o botão é branco.
-Bem, o meu é preto.
-Bom, vai neste mesmo, veja o que acontece- diz com um suspiro.
-Não acontece nada.
-Desliga e liga a TV de novo, espera uns 10 segundos
Onze minutos depois, tudo no mesmo.
-Ah, então deve ser algum problema no seu prédio- ele começa a se desesperar e a fazer apelo à fantasia.
No prédio não tem nada, não há queixas. Minha vez de blefar.
-Então, é melhor a senhora não ficar fora tanto tempo. Ou, não deixar a TV ligada!
-Então, vou levar ela comigo na próxima viagem!
Despeço- me irritada, para depois, ser forçada a rir do absurdo da conversa. O sentimento de impotência é geral. Ninguém sabe mais nada de nada. Vou, em pessoa, à loja do provedor, o tal que tinha feito tudo para não me ver; o atendente diz que vai pedir abertura de caso para verificar o problema técnico.
Abertura de caso, vejam só, que chique. E para finalizar, não se esquece de me advertir:
– Mas não abra todas nossas mensagens, nem sempre elas são confiáveis!
Outro dia vi no cinema o documentário The real Chaplin.O seu Tempos Modernos me relembraram este recente episódio. Tempos não confiáveis, transitivos, digitais, de transição e irritação. E, eu, uma pessoa transicional mal habituada, tentando ser vista nessa invisibilidade geral. Como seria bom preservar o meu próprio tempo sem perder totalmente o meu lugar. Dilema de gente antiga, antiquada? Confiram na foto acima.
Então, um grande Viva para os clássicos que sinalizam a relatividade de tudo e mostram a vida como ela está!
3 Comments
Texto muito perspicaz, Julia. Coloca muito bem e sinteticamente as tantas coisas que chateiam: “a vida é curta e os aborrecimentos do cotidiano consomem grande parte da existência.”