
29 de abril de 2022
Nestes hiatos em que tenho vivido de saudades e lealdades entre lá e aqui, as perdas tem se feito regulares e pausadas, nem por isso, menores,
Volto à minha cidade, vou ao centro, de repente, no meio da Avenida, o chão se abre e deparo com uma cratera funda que creio ser recente na Cinelândia, lugar de devoção especial, onde, na infância e juventude, eu visitava os ídolos de Hollywood e no escuro do cinema entrava em simbiose com a tela e seus habitantes. Deixava todos saírem, lia os créditos, era a ultima a abandonar o recinto, meu espaço de sonhos e fantasia.
Mas cratera, como é possível, se no Brasil não temos vulcões? Terá o aquecimento urbano trazido labaredas para cá?
Mas não, o vulcão já está extinto, não há chamas, luz, brilho.
Parada, olho o buraco grande e redondo no chão. E se eu descesse? No filme de anteontem, a mocinha se atreve a enfrentar a cratera e descobre misteriosos desenhos e rabiscos de pessoas de outros tempos, remotos antepassados de eras desaparecidas para sempre. Não, eu queria fechar este buraco, mas não dá. De repente, o mundo ficou escasso, parco, reduzido. A cidade enfeou, empobreceu, mingou. Ficou opaca para mim. Não sei como lidar com isso, agora apareceu essa cratera que me deixa travada, só consigo pensar na imagem de eu – parada, sem saber o que fazer com o redor. Muito luto, muita dor acumulada, muitos trâmites para resolver numa linguagem que não entendo nem decifro.
Ontem falei com a advogada, ágil, rápida, meio impaciente, levei os documentos exigidos, fiquei perdida com a verborragia profissional, secreta, solene, a respeito dos rituais que me faltavam cumprir e num certo momento pedi uma pausa para meditação, no que ela se surpreendeu. A moça tinha certa presunção, – algo comum à maioria dos profissionais?- achar que o resto dos mortais entende o seu jargão. O inequívoco poder de intimidar. Tive quem interrompê-la algumas vezes sobre o significado de várias expressões. Ou será meu trabalho de tradutora/ intérprete e o imperativo de se comunicar de uma forma que não permita dúvidas nem divergências? .
Divago: com certeza, esse jargão jurídico, as figuras do advogado, bacharel, tabelião, executor, juiz, magistrado nos perseguindo e intimidando, exigindo provas, reconhecimentos, averbamentos, assinaturas, testemunhas e todo inferno necessário para mostrar que a gente, herdou, deserdou, está presente, ciente, foi inventado por mentes perversas transportadas por pré-inquisidores!
“Conhecer os procedimentos envolvidos na morte de um familiar é um aprendizado imposto pelo Estado cartorial e, para a maioria das pessoas, acontece na pior hora possível. Mas é preciso saber que a morte provoca a cessação de alguns direitos e o início de outros”. Despeço-me e paro, aturdida, na Avenida Marechal Floriano.
Cuidado, passantes! É preciso saber que aquela cratera no centro da minha cidade nunca mais será totalmente fechada.
2 Comments
A força da sua prosa me levou pra beira dessa cratera Julia. Estive lá com voce, pasma e sem saber o que fazer. Não ela não se fechará, mas nós precisamos re-significá-la. Quem sabe ela não se tranformará em um novo tipo de jardim, depois de acalentarmos as dores.
Querida, muitas crateras ficaram pelo nosso caminho nesses últimos tempos. Sigamos juntas.