
Olho a janela e me lembro de como eu gostava, quando criança, de observar as gotinhas de chuva escorrendo pelo vidro, numa corrida para ver quem chegava ao chão primeiro, se fundindo umas nas outras pelo caminho.
As coisas têm memória. Não uma memória delas, mas uma memória nossa, compartilhada entre “eu” e “coisa”. É pessoal. Essa memória dá cor, sabor ou cheiro diferente a tudo que vivo. Pra mim, enroladinho frito de salsicha tem gosto de sábado num clube de Brasília com o meu pai. Estou sentada na toalha, olhando a piscina, deixando o sol secar o cloro no corpo, tomando guaraná rodeado por abelhas gulosas que tanto incomodavam. É a lembrança da amiguinha do clube, aquela que você viu só aquela vez e que te fez companhia na piscina. É a primeira vez que consegui passar por debaixo da ponte no meio da piscina. É a caminhada de volta pra casa, parando na Padaria Delícia pra comprar um Tablito.
É fantástico saber que, apesar de existirem milhões de pessoas nesse mundo e que roupas, carreiras, moda e caminhos a seguir são todos mais ou menos os mesmos, a vida de cada um é única. Isso tem também seu lado assustador, porque ser única implica solidão. Em momentos de lucidez (ou será loucura?), percebo que viver é lutar incessantemente contra a solidão. A solidão de ser único, com suas tristezas e alegrias únicas que só você pode carregar, por mais que as compartilhe com outros, por mais que as existências se repitam muito e haja pouca novidade debaixo do sol.
As janelas fechadas nos protegem da chuva e nos regalam a corrida das gotinhas da chuva. As janelas abertas deixam o vento entrar e acariciar minha casa com seu respiro, me dando novo fôlego contra a solidão. No avião, sou daquelas que escolho o assento na janela, pra que voar se eu não puder olhar o céu? Meu livro preferido quando era pequena foi Quero casa com janela. Nos meus textos aqui neste blog, que não são muitos, janelas abundam. Contei 11 menções, algumas delas são essas: “Mas a ocasião de haver duas mulheres caindo das janelas convidou uma troca de palavras”. “O melhor era sem dúvida a janela pro belo horizonte de prédios prédios prédios”. “um beija-flor aparece/na janela”.
Janelas são todas parecidas, janelas são cada uma de um jeito. Há sempre: uma possibilidade de abertura. Uma possibilidade de ver além. Uma possibilidade de não se sentir só. Continuarei a escrever sobre elas.
23 Comments
Janelas que abrem, janelas que fecham, a abertura, o horizonte, o espaço, as gotinhas de chuva escorrendo pela janela, a gente seguindo uma a uma, as recordação de antes. Prosa poética para a gente ficar relando!
Por fim, você abriu a janela das suas memórias, abriu a porta e nos convidou a tomar um café temperado das solidões que nos habitam.
Que linda interpretação, Eliana – diminuir o fosso que há entre nós e os outros. Obrigada 🙂
Transformar em palavras as sensações nasce, em parte, do desejo de diminuir o fosso que há entre nós e os outros. “A Chuva” de Carolina é desenho de ponte. Suas lembranças da infância tocam nossos sentidos. A visão dos pingos na janela, o cheiro do enroladinho de salsicha, o sol no corpo da menina faz a solidão se desmanchar em partilha, em traço de união entre singularidades.